A constituição europeia de que poucos falam

Razões do «não»

• Uma car­tilha do ca­pital

O carácter neoliberal do projecto constitucional é evidenciado logo nos seus primeiros artigos que definem os objectivos e valores da União. Aos cidadãos é oferecido «um mercado interno em que a concorrência é livre e não falseada» (art.I.3.2) e «uma economia social de mercado altamente competitiva», cuja prioridade é «a estabilidade dos preços» (art.I.3.3). (Note-se que a palavra «social» tem aqui uma função meramente decorativa e que a tónica é colocada na «estabilidade de preços», isto é, na moderação salarial.)
Daqui resulta que, pela primeira vez na história da humanidade, o «mercado» e a «concorrência» são elevados à categoria de princípios fundamentais que regem e sobre os quais assenta toda a organização da sociedade.
Os obstáculos à corrida ao lucro são eliminados, garantindo-se uma «concorrência livre e não falseada» que nenhum governo pode contrariar em situação alguma. Mesmo quando se verifiquem «graves perturbações internas que afectem a ordem pública, em caso de guerra ou de tensão internacional grave», a constituição é implacável: «os Estados-membros procedem a consultas recíprocas, tendo em vista estabelecer de comum acordo as disposições necessárias para evitar que o funcionamento do mercado interno seja afectado pelas medidas que um Estado-membro possa ser levado a tomar» (art.III.131).

• O dum­ping so­cial

A aproximação aos elevados níveis de vida e de protecção social, ao tão propalado modelo social europeu do núcleo de países iniciadores da «construção» europeia, constituiu durante muito tempo um forte motivo de atracção que impeliu estados e povos a aderirem à comunidade.
Contudo, países pobres como Portugal, após quase duas décadas de integração, continuam na cauda do desenvolvimento económico e social. Os contrastes são ainda mais acentuados se considerarmos as realidades da maioria dos dez novos estados que formam a Europa dos Vinte e Cinco, alguns dos quais com níveis de riqueza inferiores a 40 por cento da média europeia.
Indiferente ao aprofundamento das desigualdades, o projecto constitucional não só omite os objectivos da convergência social, como aponta para o abandono das políticas activas de coesão económica e social (há muito relegadas para segundo plano), a favor do funcionamento do mercado.
O art. III.209 declara que a «harmonização» das «condições de vida e de trabalho» e «a promoção do emprego» decorrerão «do funcionamento do mercado interno, que favorecerá a harmonização dos sistemas sociais», tendo em conta «a necessidade de manter a capacidade concorrencial da economia da União».
Fica assim constitucionalizado o propósito de promover o dum­ping social (pagar menos salários e garantir menos direitos), favorecer as deslocalizações (aproveitando mão-de-obra barata e sistemas fiscais mais benévolos), e colocar os próprios trabalhadores sob a pressão da «concorrência livre e não falseada» à escala do continente.
É igualmente significativo que este tratado constitucional exclua da harmonização as «disposições fiscais» e «as relativas aos direitos e interesses dos trabalhadores» de quaisquer futuras «medidas de aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas» (arts. III.171, 172 e 173). Mais uma vez são os interesses do mercado, da concorrência e da competitividade que exigem a manutenção das actuais distorções entre os vários países, das quais o grande capital retira vantagens adicionais.

• Di­reitos es­va­zi­ados

Resultado de processos históricos marcados pelos duros combates dos trabalhadores e dos povos, as constituições da maioria dos Estados-membros, embora de forma diferenciada, consagram importantes direitos sociais aos seus cidadãos, atribuindo amplas responsabilidades aos poderes públicos na sua prossecução.
Apesar de estes direitos estarem sob fogo cerrado na generalidade dos países, as tentativas de destruição ou restrição têm sido, em muitos casos, travadas ou limitadas na sequência de fortíssimas vagas de contestação social.
A constituição europeia contorna esta dificuldade omitindo conceitos básicos como o direito à reforma, ao subsídio de desemprego, ao salário mínimo, ao rendimento mínimo, aos serviços públicos, etc. Outros surgem distorcidos e esvaziados de conteúdo concreto.
Um exemplo gritante é o direito ao trabalho, reconhecido na maioria das constituições europeias e consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Na famigerada Carta dos Direitos Fundamentais, agora integrada neste tratado, afirma-se: «Todas as pessoas têm o direito de trabalhar (…). Todos os cidadãos têm a liberdade de procurar emprego» (art.II.75.1 e 2).
O direito ao trabalho, que pressupõe políticas de emprego que o garantam, é assim substituído pelo vago «direito de trabalhar» e por uma alegada «liberdade de procurar emprego», o que promove a total desresponsabilização do Estado neste domínio. Aliás, refira-se, a «coordenação das políticas de emprego», bem como a definição das suas «directrizes» passa a ser uma competência da União (art.I.15.2).
O direito à segurança social é transfigurado em «direito de acesso às prestações de segurança social» (art.II.94), mas não é reconhecido o direito à reforma, palavra que não aparece uma única vez nos 448 artigos da constituição.
Apenas o art.II.85 alude aos «direitos das pessoas idosas» nestes termos: «a União reconhece e respeita o direito das pessoas idosas a uma vida condigna e independente e a sua participação na vida social e cultural». Como e com que meios? Caberá a cada um decidir…
Acresce que nas «Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais» elaboradas pelo Presidium da Convenção (órgão que elaborou o projecto) e que constam nas dezenas de anexos ao texto principal, se salvaguarda que «a referência a serviços sociais visa os casos em que esses serviços tenham sido instituídos no intuito de assegurar determinadas prestações, mas não implica de modo algum que tais serviços devam ser instituídos quando não existirem».
Por último, sublinhe-se que a carta dos direitos fundamentais, tantas vezes apresentada como um avanço social (argumento que algumas forças ditas de esquerda e mesmo estruturas sindicais utilizam para justificar o seu «sim» à constituição), não só não cria «quaisquer novas atribuições ou competências para a União» (art.II.111.2.), mas também não pode ser invocada pelos cidadãos na defesa dos seus direitos perante os tribunais. Para que serve então?...

• Fle­xi­bi­li­dade e adap­ta­bi­li­dade

No passado dia 11 de Maio, o Parlamento Europeu aprovou em primeira leitura, a proposta de directiva que altera a organização do tempo de trabalho.
Aparentemente, os deputados bateram-se pela manutenção do máximo semanal de 48 horas, recusando elevá-lo para as 65 horas, como pretendia a Comissão Europeia, e determinaram a proibição do chamado «opt-out» (possibilidade de acordos individuais com horários superiores) no prazo de três anos, após a aprovação final da directiva.
A 18 dias do referendo em França, uma pequena «vitória» da «Europa social» veio a calhar. O deputado relator, o espanhol Alejandro Cercas, regozijando-se com a decisão do hemiciclo, não hesitou em afirmar que «este Parlamento está muito próximo daqueles trabalhadores franceses que têm medo que tenhamos esquecido a sua qualidade de vida e o seu emprego».
Mas tudo não passou de uma encenação. Mais empenhados em realizar os desejos do patronato do que em defender os direitos dos trabalhadores, os deputados socialistas, verdes e alguns populares deram, de facto, luz verde a mais uma ofensiva flexibilizadora do horário de trabalho.
Na realidade, o limite de 48 horas semanais não é efectivo, já que o cálculo passa a poder ser feito em períodos de um ano, em vez dos actuais quatro meses, o que significa que a carga horária pode ser superior durante muitas semanas seguidas «por razões objectivas ou técnicas que tenham a ver com a organização do trabalho».
Acresce que o Parlamento também concordou com a introdução do conceito de «período inactivo de trabalho» (onde se incluem as pausas e tempos de guarda), admitindo que estes «podem ser calculados de uma forma específica», ou seja, que podem ser excluídos total ou parcialmente da contagem do tempo de trabalho e respectiva remuneração normal.
O mundo do trabalho está assim confrontado com uma directiva que, como sublinhou a deputada do PCP, Ilda Figueiredo, «põe em causa conquistas com mais de 100 anos e afecta milhões de trabalhadores».
A luta determinada contra esta ataque frontal aos direitos dos trabalhadores implica também um envolvimento consciente na batalha pelo «não» ao projecto constitucional, a principal fonte inspiradora da directiva. Não é por acaso este texto apenas reconhece, sem quantificar, que os trabalhadores «têm direito a uma limitação da duração máxima do trabalho e a períodos de descanso semanal e diário».
Em compensação, a citação seguinte é muito mais específica: «A União e os Estados-membros empenham-se (...) em especial, em promover mão-de-obra qualificada, formada e susceptível de adaptação, bem como mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças económicas, tendo em vista os objectivos enunciados no artigo I.3» [concorrência e economia altamente competitiva] (art.III.203).
A flexibilidade do trabalho torna-se assim num preceito constitucional. Com a imposição de «mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças», ficam também legitimados o corte de efectivos, os despedimentos em massa e as deslocalizações.

• Ser­viços pú­blicos à mercê do mer­cado

O conceito de serviço público implica a garantia de acesso universal dos cidadãos, independentemente da sua situação social ou geográfica, a direitos fundamentais como a saúde, a educação, a cultura, a energia, os transportes, as comunicações, a água, etc.
A constituição europeia não fala em serviços públicos, mas em «serviços de interesse geral» (SIG) e «serviços de interesse económico geral» (SIEG). Quem pensar que se trata de uma simples mudança de terminologia, engana-se...
No Livro Branco, publicado em 2004 pela Comissão Europeia, afirma-se expressamente: «Os termos “serviços de interesse geral” e “serviços de interesse económico geral” não devem ser confundidos com a expressão “serviço público”» (pág.23). O que são então estes SIG e SIEG?
No projecto constitucional não encontramos nenhuma definição dos SIEG. Em contrapartida existem várias disposições que restringem o campo de acção e adulteram o carácter e objectivos dos serviços públicos, conduzindo inevitavelmente à sua destruição.
A começar pela que afirma: «No que respeita às empresas públicas e empresas a que concedam direitos especiais ou exclusivos, os Estados-membros não tomam nem mantêm qualquer medida contrária à Constituição» (art.III.166.1).
E acrescenta-se: «As empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral ou que tenham a natureza de monopólio fiscal ficam submetidas às disposições da Constituição, designadamente às regras de concorrência» (art.III.166.2).
Os Estados ficam assim proibidos de manter um estatuto especial a empresas públicas, designadamente às que prestam serviços públicos, e são impelidos a entregá-las ao «mercado» e à «concorrência não falseada», isto é, a privatizá-las. Na prática, estas e outras disposições, tornam inconstitucionais as políticas tendentes à garantia do acesso universal a bens essenciais.
Como se vê, a célebre e contestada directiva Bolkestein, proposta pela Comissão Europeia em 2004, não foi um produto isolado do comissário holandês que lhe deu o nome, mas é uma decorrência lógica do modelo liberal que serve de matriz ao projecto constitucional.
Ao promover a aplicação do princípio do «país de origem» no mercado interno de serviços, a directiva mais não faz do que remover o último obstáculo à livre concorrência nesta sensível área.
Qualquer prestador de serviços passaria a actuar sem restrições em todo o espaço europeu, regendo-se unicamente pela legislação do Estado-membro onde está estabelecido. Para além de tornar inviável qualquer controlo efectivo por parte das autoridades nacionais, esta norma levaria as grandes empresas a deslocarem as suas sedes para os Estados-membros com regulamentações menos exigentes e sistemas fiscais mais favoráveis, que passariam a aplicar em toda a União.
As «liberdades fundamentais» da União («livre circulação de serviços» e «liberdade de estabelecimento») prevaleceriam sobre direitos fundamentais dos cidadãos. Neste como noutros aspectos, a directiva Bolkestein mais não faz do que cumprir o espírito e a letra do projecto constitucional.

• O lobby da Igreja
e os di­reitos das mu­lheres


Uma forma de negar direitos é omiti-los. É o que faz o projecto constitucional no que respeita a boa parte dos direitos das mulheres que são reconhecidos na generalidade dos países europeus.
Por exemplo, o texto consagra «o direito de contrair casamento e o direito de constituir família» (art.II.69). Porém, ignora o direito ao divórcio e os direitos sexuais e reprodutivos, designadamente à contracepção e ao aborto.
E como num documento deste tipo nada é fortuito, a afirmação lacónica de que «Todas as pessoas têm direito à vida» (II.62.1), sem mais considerações, levanta as maiores suspeitas, tanto mais que não é dada qualquer definição jurídica de pessoa humana.
Acresce que «Direito à vida» e «Deixem-nos viver» são nomes adoptados por conhecidas associações europeias anti-aborto.
De resto, a referência à herança religiosa europeia no preâmbulo e o reconhecimento da «identidade e contributo específico» das igrejas, com as quais «a União mantém um diálogo aberto» (art.I.52) indiciam um claro recuo face ao laicismo e ao princípio da separação das igrejas e do Estado, o qual, sublinhe-se, nunca é mencionado no texto.
Ao inverso, é consagrada «a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos».
Estes amplos direitos e liberdades religiosas contrastam com a parcimónia ou omissão total de direitos fundamentais noutros capítulos, designadamente no que respeita aos direitos das mulheres.
Claramente, o projecto constitucional preconiza o reconhecimento oficial da Igreja como um lobby influente no funcionamento futuro da Europa, o que motiva as mais diversas preocupações, designadamente aos movimentos pela igualdade de sexos, conhecidas que são as posições retrógradas da instituição não só em matéria de contracepção, mas também no que respeita à submissão das mulheres aos homens e ao papel que lhes reserva na sociedade, ficando em casa a tratar dos maridos e filhos.

• De­mo­cracia ou di­ta­dura?

A constituição europeia restringe drasticamente o campo de acção dos governos nacionais, eleitos por sufrágio universal, reduzindo-os a meros executores das políticas decididas superiormente, em instâncias que escapam ao controlo democrático dos povos.
Tal como já hoje acontece, o Parlamento Europeu é o único órgão eleito directamente pelos cidadãos europeus. Contudo, apesar de alguns retoques de pormenor necessários à propaganda, o seu real poder continua limitado e diminuto já que «os actos legislativos só podem ser adoptados por proposta da Comissão Europeia» (art.I.26.2).
É verdade que «o parlamento pode, por maioria dos membros que o compõem, solicitar à Comissão que submeta à sua apreciação todas as propostas sobre as questões que se lhe afigure requererem a elaboração de um acto da União» mas, em última instância, cabe sempre a esta decidir se o faz ou não: «Caso não apresente propostas, a Comissão informa o Parlamento dos motivos para tal» (art.III.332.
A Comissão Europeia acumula assim um poder exorbitante, exercendo «as funções de coordenação, de execução e de gestão» (art.I.26.1). A este órgão não eleito pelos povos, cabe ainda recomendar ao Conselho Europeu (chefes de Estado e de Governo) «as grandes orientações da política económica», das quais o Parlamento europeu é simplesmente «informado» (art.III.179).
Os seus membros «são escolhidos em função da sua competência geral e do seu empenhamento europeu de entre personalidades que ofereçam todas as garantias de independência» (art.I.26.4).
Sendo que os «objectivos da União» são a «concorrência e a competitividade», de que a Comissão é o principal garante, é evidente que os seus membros serão sempre recrutados entre os mais acérrimos defensores do capitalismo.
Este autêntico colete-de-forças, que pretende remeter à inanidade Estados e povos inteiros, é ainda reforçado por uma outra instituição-chave para a política liberal da União.
Trata-se do BCE, o todo-poderoso Banco Central Europeu, «independente no exercício dos seus poderes» (art.I.30.3), que «não pode solicitar ou receber instruções das instituições, órgãos ou organismos da União, dos governos dos Estados-membros ou de qualquer outra entidade» (art.III.188).
Com a missão principal de «garantir a estabilidade dos preços» (art. III.185), deve ser «consultado» sobre «qualquer proposta de acto da União» e, «pelas autoridades nacionais, sobre qualquer projecto de disposição legal nos domínios das suas atribuições» (art.III-185).
Aos povos é dado um único instrumento para interferirem na política europeia – o tão badalado «direito de petição». Vejamos em os termos em que é definido:
«Um milhão, pelo menos, de cidadãos da União, nacionais de um número significativo de Estados-membros, pode tomar a iniciativa de convidar a Comissão a, no âmbito das suas atribuições, apresentar uma proposta adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um acto jurídico da União para aplicar a Constituição».
Repare-se que, independentemente da dimensão que tal iniciativa internacional possa atingir, a Comissão Europeia não tem qualquer obrigação de acolher o conteúdo da petição e apresentar correspondente proposta ao Parlamento Europeu.
Tamanho esforço afigura-se inglório, sobretudo porque, à partida, o âmbito das matérias está condicionado ao respeito do espírito e letra de uma «constituição» feita à margem dos povos e que a maioria não sufragou (apenas estão previstos referendos em nove países). Será este um grande avanço democrático, como alguns pretendem fazer crer?

• O pri­mado sobre a le­gis­lação na­ci­onal

Nas raras ocasiões em que este projecto tem sido debatido publicamente, os seus defensores desvalorizam deliberadamente as profundas implicações que terá para a soberania nacional, alegando que os países mantêm as respectivas constituições.
A verdade é que já hoje o direito comunitário prevalece sobre a legislação nacional e o próprio tribunal europeu tem competência para impor as suas decisões aos Estados. Porém, o facto de o novo tratado se proclamar a si próprio de «constituição» (art.I-6) confere-lhe um estatuto de Lei Fundamental nunca antes atribuído a anteriores tratados. E para que não restem dúvidas, o art. I.6. esclarece: «A constituição e o direito adoptado pelas instituições da União primam sobre o direito dos Estados-membros.»
A conclusão só pode ser uma: caso seja ratificada, a constituição europeia impor-se-á sobre as constituições nacionais, que perderão relevância até ao total desaparecimento, à medida que as suas disposições forem substituídas por directivas comunitárias elaboradas no mais puro espírito neoliberal do texto europeu.

• Es­tados e povos sub­ju­gados

«Os Estados-membros abstêm-se de qualquer medida susceptível de pôr em perigo a realização dos objectivos da União» (art.I.5.2). Se tivermos em conta que o primeiro objectivo enunciado é «a livre concorrência não falseada» e a «alta competitividade da economia», constatamos que os Estados ficam proibidos de tomar qualquer medida, designadamente nos domínios económico e social, que ponha em causa o sacralizado mercado.
De resto, o projecto atribui à União competência exclusiva no estabelecimento das regras de concorrência, na política monetária e na política comercial. Qual guardiã do liberalismo, todos os instrumentos económicos e monetários ficam nas mãos da União.
Nas restantes áreas, a margem de manobra deixada aos Estados está também fortemente condicionada. Nos casos das competências partilhadas (energia, transportes, pescas, justiça, cultura, ambiente, etc.): «os Estados-membros exercem a sua competência na medida em que a União não tenha exercido a sua ou tenha decidido deixar de a exercer» (art. I.12.2). Trata-se portanto de uma partilha mitigada, já que a União tem prioridade em qualquer situação e em qualquer domínio.
Por exemplo, reconhece o direito aos Estados de coordenarem «as suas políticas económicas» com a ressalva de que a aprovação «das orientações gerais dessas políticas» cabe exclusivamente ao Conselho de Ministros da União (art.I.15.1). Por outras palavras, os Estados podem coordenar, mas quem decide é a União.

• O fim da una­ni­mi­dade

Na União desenhada no projecto constitucional, as decisões do Conselho de Ministros (governos dos Estados-membros) são tomadas por maioria qualificada, ou seja 55 por cento dos países, num mínimo de 15, representando pelo menos 65 por cento da população. Os Estados-membros perdem assim o direito de vetar uma decisão que vá contra os interesses nacionais, sendo necessário juntar pelos menos quatro Estados-membros com 35 por cento da população.
No Conselho Europeu (reunião dos chefes de Estado e de Governo) as decisões são tomadas por consenso, mas é por maioria qualificada que elegem o presidente da União (novo cargo criado no projecto com mandato de dois anos e meios), bem como o Ministro dos Negócios Estrangeiros da União (outra nova entidade que surge no projecto constitucional).
Não sendo um Estado, a União Europeia passa a agir como tal, dispondo uma figura de proa, que incarna a direcção política, que tem a particularidade de não poder «exercer qualquer mandato nacional» (art.I.27).
As presidências rotativas semestrais acabam e, com elas, os últimos resquícios de igualdade de direitos e de tratamento entre Estados-membros. A mesma orientação é seguida na composição da Comissão Europeia, que terá um número de membros correspondente apenas a dois terços do número de Estados-membros. Estes perdem portanto do direito de ter um representante em permanência no executivo comunitário.


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