A barbárie

Henrique Custódio
Nicola Calipari, o italiano que há dias foi morto a tiro no Iraque pelas tropas norte-americanas quando protegia a jornalista Giuliana Sgrena, sua compatriota feita refém e que ele próprio havia libertado, tornou-se num trágico paradigma do incomensurável drama que a invasão dos EUA desencadeou no país onde a Bíblia localizou o Paraíso inicial.
Primeiro, a morte de Calipari está muito longe de ser «explicada» pelas justificações avançadas pelos responsáveis do exército norte-americano, nomeadamente que a viatura onde seguia a refém e os seus libertadores «ia muito depressa» e «não obedeceu aos sinais feitos pelas tropas» dos EUA.
É preciso ver que Nicola Calipari não era um agente qualquer, mas o chefe das Operações Internacionais dos serviços secretos italianos, não apenas traquejado nestas delicadas negociações para libertar reféns de grupos extremistas a actuar no Iraque (foi ele que, ainda há poucos meses, libertou as duas trabalhadoras humanitárias italianas, Simona Pari e Simona Torretta, entre outros), mas dominando ao mais alto nível as ligações entre as forças italianas no Iraque, que totalizam para cima de três mil homens, com a hierarquia norte-americana.
Bastava isto para se recusar, liminarmente, as alegações norte-americanas de que a viatura que transportava a equipa de Calipari com a refém libertada se deslocava com desconhecimento das tropas norte-americanas. É, simplesmente, impensável que o chefe máximo das operações secretas italianas no Iraque andasse por ali a liderar, ele próprio, uma operação de resgate sem coordenar minuciosamente os seus movimentos com os «aliados americanos», tal como é impossível que os apertadíssimos sistemas de segurança das forças norte-americanas no Iraque desconhecessem esta operação em curso.
Além do mais, continua por explicar não apenas por que a viatura foi alvejada a 700 metros do aeroporto e não foi interceptada por nenhuma das numerosas barreiras norte-americanas que, entretanto, cruzara ao longo dos 200 quilómetros do seu percurso, mas sobretudo por que foi metralhada com mais de 300 tiros de armas pesadas, próprias para a destruição maciça.
A questão está por resolver, no ar vibra, estridente, a acusação da própria refém, Giuliana Sgrena, de que as tropas norte-americanas «dispararam sem aviso» contra o carro que «seguia devagar» e os EUA, entretanto, já são acusados à boca cheia de terem tentado «calar» definitivamente a jornalista italiana, conhecida crítica à invasão norte-americana do Iraque.
O caso, entretanto, é paradigmático do infernal quotidiano que o exército norte-americano impôs às suas próprias tropas, que vivem acossadas num medo tão omnipresente e indiscriminado, que são um perigo até para os seus aliados: os soldados norte-americanos já abateram, «por engano», pelo menos cinco jornalistas ocidentais (dados da organização Repórteres Sem Fronteiras) e indeterminadas dezenas de outros civis e mesmo militares, enquanto os postos de controle dos militares norte-americanos no Iraque já são quase tão temidos como os carros armadilhados que diariamente explodem no país.
Entretanto, ninguém imagina o que este medo leva as tropas norte-americanas a fazer sobre a população iraquiana, mas para se ter uma ideia bastam as notícias que nos vão chegando dos casamentos e outras festividades que são metralhados com dezenas de mortos e das casas bombardeadas regular e indiscriminadamente, sempre com numerosos mortos e feridos e sem nenhuma explicação senão a da «legitimidade» do ocupante em destruir o que lhe apetecer.
É o paradigma da barbárie. À solta e cega de medo.


Mais artigos de: Opinião

Um livro para a estante

O «Público» deu à estampa uma versão revista e ampliada do chamado «Livro de Estilo». Pela módica quantia de nove euros o país pode compartilhar daquilo que o próprio jornal pela voz do seu director apresenta como um contributo «para elevar os padrões da comunicação social portuguesa.»Louva-se a intenção mas regista-se a...

«Lusomundo Media» – o negócio

Ocorreu há dias a compra pela Olivedesportos (OD) da «holding» da PT-Multimedia (PTM) que detém 80,9% da Lusomundo Media (LM), que, entre outros, controla o Diário de Notícias, Jornal de Notícias, 24 Horas e TSF. O negócio custou 300,4(!) milhões de Euros e ainda carece, nomeadamente, do aval da Alta Autoridade para a...

O retrato

Todos estarão lembrados do episódio melodramático protagonizado por Paulo Portas na noite de 20 de Fevereiro, quando da tribuna da sala de conferências do CDS/PP anunciou - urbi et orbi - que falhara todos os objectivos que se propusera na disputa eleitoral, pelo que considerava ser seu dever fazer prova pública de...

Tempo de esperança no Uruguai

No Uruguai vivem-se momentos de grande esperança numa viragem à esquerda na vida nacional. Neste pequeno país do Cone Sul de pouco mais de três milhões e meio de habitantes e o mais envelhecido da América Latina, centenas de milhares de pessoas, na sua maioria jovens, desceram às ruas no dia 1 de Março para festejar a...

A «sociedade civil» e os seus equívocos

A chamada «sociedade civil», tenha ela expressão no «Compromisso Portugal» ou na «Sedes», não sossega nem dá sossego. É tempo dela e do seu trasbordante activismo.