Pela estrada fora
De vez em quando surpreendo-me com a minha capacidade de ainda me surpreender. Quero dizer que, à medida que os anos pesam e se vão diluindo naturalmente as vivacidades dos sentidos, de tal forma que a gente se pergunta se é a paisagem que se desvanece ou a vista que se vai toldando, se vai achando normal que a surpresa seja coisa do passado, moderada por tantas surpresas que aconteceram já. Mas eis que...
No último número do semanário Expresso, um título surpreendeu-me. E precisamente porque julgava enterrado – olha a ingenuidade! - um «raciocínio» que fez o seu caminho durante o fascismo e a guerra colonial. O de que esta «matava menos» – já então – do que os acidentes na estrada.
Pois não é que, trinta anos depois do 25 de Abril, lá vem a tenebrosa comparação, escarrapachada em manchete e artigo de primeira página, escrita eventualmente por quem da guerra que consumiu gerações de jovens portugueses e suas famílias não tem memória a não ser por ouvir contar?
Desta vez, «acertando» com o tempo que se vive, a tese é a de que as «estradas matam mais» que o Iraque!
Nem sequer nos daríamos ao trabalho de desmentir esta contabilidade cínica se não lhe achássemos, também, um erro de fundo. Que é o de que as mortes contadas não são as mortes de uma guerra injusta imposta a um povo inteiro, mas apenas as que os «contabilistas fúnebres» do Expressoacham, escolhendo os cadáveres a preceito.
É que, para os fascistas de ontem – e ainda restam alguns hoje, inchados por um poder que lhes promove a ideologia e as práticas –, só contavam as vítimas achadas entre a tropa colonial, ficando de fora todos os milhares massacrados nas aldeias e cidades coloniais, não apenas os guerrilheiros dispostos ao sacrifício libertador do povo mas o próprio povo. Como hoje, a contabilidade do Expresso se debruça sobre os números oficiais do Pentágono para fazer a sinistra contagem dos mortos e compará-los com... os mortos nos acidentes de viação em Portugal. De fora ficam os muitos e muitos milhares de iraquianos, de todas as crenças e opções, esmagados por cirúrgicas bombas. De fora fica a destruição de um país, o comprometimento do seu futuro, os vestígios culturais do seu passado.
Leviandade? Não creio. Passada a surpresa, acabo por pensar que se trata de uma contabilidade que diz bem do que é hoje a ideologia dominante, que pretende que vejamos o mundo pelo canudo da american way. Esta estrada, semeada de mortes, leva longe.
No último número do semanário Expresso, um título surpreendeu-me. E precisamente porque julgava enterrado – olha a ingenuidade! - um «raciocínio» que fez o seu caminho durante o fascismo e a guerra colonial. O de que esta «matava menos» – já então – do que os acidentes na estrada.
Pois não é que, trinta anos depois do 25 de Abril, lá vem a tenebrosa comparação, escarrapachada em manchete e artigo de primeira página, escrita eventualmente por quem da guerra que consumiu gerações de jovens portugueses e suas famílias não tem memória a não ser por ouvir contar?
Desta vez, «acertando» com o tempo que se vive, a tese é a de que as «estradas matam mais» que o Iraque!
Nem sequer nos daríamos ao trabalho de desmentir esta contabilidade cínica se não lhe achássemos, também, um erro de fundo. Que é o de que as mortes contadas não são as mortes de uma guerra injusta imposta a um povo inteiro, mas apenas as que os «contabilistas fúnebres» do Expressoacham, escolhendo os cadáveres a preceito.
É que, para os fascistas de ontem – e ainda restam alguns hoje, inchados por um poder que lhes promove a ideologia e as práticas –, só contavam as vítimas achadas entre a tropa colonial, ficando de fora todos os milhares massacrados nas aldeias e cidades coloniais, não apenas os guerrilheiros dispostos ao sacrifício libertador do povo mas o próprio povo. Como hoje, a contabilidade do Expresso se debruça sobre os números oficiais do Pentágono para fazer a sinistra contagem dos mortos e compará-los com... os mortos nos acidentes de viação em Portugal. De fora ficam os muitos e muitos milhares de iraquianos, de todas as crenças e opções, esmagados por cirúrgicas bombas. De fora fica a destruição de um país, o comprometimento do seu futuro, os vestígios culturais do seu passado.
Leviandade? Não creio. Passada a surpresa, acabo por pensar que se trata de uma contabilidade que diz bem do que é hoje a ideologia dominante, que pretende que vejamos o mundo pelo canudo da american way. Esta estrada, semeada de mortes, leva longe.