O velho Abril

Leandro Martins
Não passa um ano sem que, Abril chegado, não venham alguns - são hoje muitos, às claras - proceder à ressurreição de velhas múmias de um passado velho. Abril não teve apenas datas gloriosas, sempre contadas a partir de 25. Não é por acaso que, quando se quer referir o fascismo, se diz 24 de Abril. E é gente do 24 que, passando quase todo o ano na ribalta, sob as luzes de órgãos de comunicação que fazem o frete à política de direita, tornam à ribalta para, embrulhados de novo, surgirem como gente de Abril.
Alguns já morreram, como Spínola, que não deixa, mais uma vez, de ser evocado como um dos que «despoletou» a revolução. Todos nos lembramos do seu papel na crise do regime fascista, do livro que publicou para tentar limpar-se da derrota na Guiné lançando a lama da impotência sobre os seus amigos de antes e, de uma penada, tentar a manobra desesperada do neocolonialismo. Era tarde de mais. Mas, ainda assim, o seu papel nos tempos mais acesos da revolução serviram para desmascará-lo e aos seus torpes golpes contra-revolucionários. Homens de Abril chamam a Sá Carneiro e aos «liberais» do fascismo. Pires Veloso torna às imagens para simbolizar a «luta pela democracia», quando o PS fugiu com os seus aliados para o Porto, disposto a sabotar a marcha para o socialismo.
Homens deste velho Abril são, por exemplo, os que enriqueceram à custa da exploração. Como Belmiro de Azevedo, entrevistado pelos seus lacaios travestidos de jornalistas. Em Abril, a mesma Felícia Cabrita que, com José Manuel Fernandes, sorveu deleitosamente as sentenças de Belmiro, faz no Expresso a biografia de Valentim Loureiro. Para estes plumitivos, devia ser instituído um prémio - o apito de ouro.
A coisa não fica por aqui. O Abril desta gente é ainda oportunidade para entrevistar um punhado de pides, para lhes sublinhar as mágoas e lhes lavar o fel. Raras são as contribuições para repor a verdade da história, e as lutas de ontem são olhadas com o desprezo de nostalgias fora de moda. Até as condecorações que, com pompa e circunstância, são impostas por este poder sem memória, visam muitas vezes meter no mesmo saco a coragem e a traição. Ou, como me dizia há dias um camarada: «Houve gente ali que não foi condecorada por ter sido o que foi, mas por ser hoje o que é.»
O alarido das múmias pode ser ensurdecedor. Mas o clamor de Abril é mais alto.


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