O senhor engenheiro engraxa?

José Casanova
No sagrado respeito pela ordem natural das coisas e em serviço combinado, a Renascença e o Público entrevistaram Belmiro de Azevedo. José Manuel Fernandes fez as honras do Público. Trata-se de uma entrevista a um homem de Abril («antes do 25 de Abril ninguém o conhecia. Hoje é o homem mais rico de Portugal»), espécie de homem do povo na revolução («com origens humildes em Marco de Canaveses»), e «homem de sucesso».
Saber o que o Engenheiro «pensa destes 30 anos» e se «a receita do seu sucesso» pode «ser aplicada ao país» foi, dizem os entrevistadores, a razão da entrevista.
A verdade é que estamos perante uma entrevista que fará história. Não pelas respostas, diga-se: na verdade, o pensamento do Engenheiro é imutável e sobejamente conhecido, tal como é imutável e sobejamente conhecido o processo que, em qualquer país do Planeta, faz de um qualquer Zé Ninguém o Homem Mais Rico do País. É, então, pelas perguntas – se assim podem designar-se as odes ao entrevistado produzidas pelos panegiristas de serviço – que esta entrevista ficará na história. Infelizmente, o reduzido espaço desta crónica não me permite o divertimento de as transcrever todas. Aqui ficam, então, as três primeiras: «Pode-se sair de casa, comprar um jornal, fazer as compras do mês, almoçar e em tudo isso estar a contribuir para a sua fortuna. Ora se o país tivesse feito nestes 30 anos a mesma coisa que fez às suas empresas, nós teríamos hoje todos um PIB muito mais elevado. Qual foi o seu segredo?»; «Conseguiu com a sua empresa o que o país não conseguiu, e o desenvolvimento era o terceiro ‘D’ do 25 de Abril. Foi por causa da destruição dos grupos económicos durante a revolução?»; «Costuma definir-se como um europeu, um homem do mundo, mas também se diz social e culturalmente um homem de Marco de Canaveses, onde nasceu em 1938. Foi lá que fez a instrução primária, quando foi para o liceu teve de ir para o Porto, onde ‘acampou’ no estaleiro das obras onde um seu tio trabalhava. Olhando para trás e para o país de hoje, que balanço faz?».
Sem comentários.
Disse-me o Alexandre O’Neill, já lá vão quarenta e tal anos, que no final da entrevista, José Manuel Fernandes, exibindo o desconforto que faz as delícias do boss, ainda ousou perguntar. «O senhor engenheiro hoje não engraxa?» – ao que, garante-me o mesmo O’Neill, o Engenheiro, apressado e brusco, terá respondido: «Engraxo na Baixa».


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