Crónica marciana
Depois de ter passado boa parte da adolescência a devorar tudo o que encontrei sobre extraterrestres, discos voadores, viagens à Lua, expedições a Marte e o mais que a fértil imaginação de escritores e realizadores de cinema e televisão puseram à nossa disposição, depois disso, dizia, sou forçada a confessar que a exploração do espaço deixou de me encantar.
Longe vão os tempos em que a magia de «2001, Odisseia no Espaço» fazia sonhar com o universo desconhecido, ou que livros como «A nebulosa de Andrómeda» abriam portas à utopia da convivência pacífica não só planetária mas também intergaláxica. Hoje, ao olhar as estrelas, lá onde as estrelas ainda podem ser vistas sem a ofuscação das luzes do que se convencionou chamar civilização, é angústia que sinto ao pensar que esta civilização tem o poder e os meios para transformar o espaço inexplorado numa réplica do nosso mundo.
Embora sabendo que, de imediato, não passa de pura propaganda eleitoral, é estarrecedor ouvir o presidente norte-americano, George W. Bush, falar de uma base permanente na Lua ou de projectos megalómanos em Marte, sem outro objectivo do que afirmar a expansão do império americano.
Mesmo sabendo que a campanha marciana de Bush é um expediente para afastar as atenções do eleitorado da situação económica do país e da sangria em que se converteu a ocupação do Iraque, arrepia pensar que algum dia os valores agora dominantes no planeta - aprofundamento das desigualdades sociais, exploração desenfreada e delapidação dos recursos, uso sistemático do poder militar... - possam vir a ser exportados à escala sideral.
Por distantes que possam parecer tais intentos, mostra a experiência que muito do que ontem parecia pura ficção científica é já hoje uma realidade. E se importa reconhecer que muitas das descobertas científico-técnicas deram um contributo decisivo para a melhoria das condições de vida de muitos seres humanos, não é menos verdade que os avanços do conhecimento estão a ser apropriados por um punhado de gente cujo único objectivo é servir-se deles em proveito próprio, mesmo pondo em risco a sobrevivência da humanidade.
À escala nacional, os serventuários dos bushs deste mundo ainda não nos acenam com aventuras marcianas para desviar atenções dos nossos terrenos problemas, mas lá chegarão. Por enquanto limitam-se a agitar o fantasma da «necessidade» de contenção de despesas para justificar o não aumento de salários no país que tem os mais baixos salários da União Europeia, como faz Durão Barroso, ou o fantasma do crescente número de reformados fruto do envelhecimento da população e consequente dificuldade em garantir reformas, dizem, para nos convencerem da «necessidade» de, recebendo pouco, trabalharmos mais anos e termos mais filhos, como garantiu Vítor Constâncio.
Haverá quem pense que uma situação como esta chega e sobra para legitimar o desejo de emigrar para Marte, ou seja lá para onde for para escapar aos males do mundo, mas há que convir que, para além de inútil, não seria decente. O melhor mesmo é enfrentar aqui o problema, antes que a maleita se espalhe pelo espaço e nos deixe num beco sem saída. Então, só então, poderemos voltar a olhar para as estrelas com o deslumbramento de quem constrói um mundo novo.
Longe vão os tempos em que a magia de «2001, Odisseia no Espaço» fazia sonhar com o universo desconhecido, ou que livros como «A nebulosa de Andrómeda» abriam portas à utopia da convivência pacífica não só planetária mas também intergaláxica. Hoje, ao olhar as estrelas, lá onde as estrelas ainda podem ser vistas sem a ofuscação das luzes do que se convencionou chamar civilização, é angústia que sinto ao pensar que esta civilização tem o poder e os meios para transformar o espaço inexplorado numa réplica do nosso mundo.
Embora sabendo que, de imediato, não passa de pura propaganda eleitoral, é estarrecedor ouvir o presidente norte-americano, George W. Bush, falar de uma base permanente na Lua ou de projectos megalómanos em Marte, sem outro objectivo do que afirmar a expansão do império americano.
Mesmo sabendo que a campanha marciana de Bush é um expediente para afastar as atenções do eleitorado da situação económica do país e da sangria em que se converteu a ocupação do Iraque, arrepia pensar que algum dia os valores agora dominantes no planeta - aprofundamento das desigualdades sociais, exploração desenfreada e delapidação dos recursos, uso sistemático do poder militar... - possam vir a ser exportados à escala sideral.
Por distantes que possam parecer tais intentos, mostra a experiência que muito do que ontem parecia pura ficção científica é já hoje uma realidade. E se importa reconhecer que muitas das descobertas científico-técnicas deram um contributo decisivo para a melhoria das condições de vida de muitos seres humanos, não é menos verdade que os avanços do conhecimento estão a ser apropriados por um punhado de gente cujo único objectivo é servir-se deles em proveito próprio, mesmo pondo em risco a sobrevivência da humanidade.
À escala nacional, os serventuários dos bushs deste mundo ainda não nos acenam com aventuras marcianas para desviar atenções dos nossos terrenos problemas, mas lá chegarão. Por enquanto limitam-se a agitar o fantasma da «necessidade» de contenção de despesas para justificar o não aumento de salários no país que tem os mais baixos salários da União Europeia, como faz Durão Barroso, ou o fantasma do crescente número de reformados fruto do envelhecimento da população e consequente dificuldade em garantir reformas, dizem, para nos convencerem da «necessidade» de, recebendo pouco, trabalharmos mais anos e termos mais filhos, como garantiu Vítor Constâncio.
Haverá quem pense que uma situação como esta chega e sobra para legitimar o desejo de emigrar para Marte, ou seja lá para onde for para escapar aos males do mundo, mas há que convir que, para além de inútil, não seria decente. O melhor mesmo é enfrentar aqui o problema, antes que a maleita se espalhe pelo espaço e nos deixe num beco sem saída. Então, só então, poderemos voltar a olhar para as estrelas com o deslumbramento de quem constrói um mundo novo.