O desafio da América Latina
O ano 2004 encontra a humanidade colocada perante a alternativa sintetizada, noutro contexto histórico, por Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie.
Não temos a menor ideia dos contornos que poderia assumir o socialismo do futuro. Mas a evolução da crise de civilização - a maior da história - fecha as saídas. Ou caminhamos para o abismo ou criamos condições para aprofundar a crise do capitalismo, inviabilizando a sua continuidade.
Sou optimista. Precisamente porque a humanidade, embora lentamente, começa a perceber que a sua sobrevivência é posta em causa por um sistema de poder monstruoso, acredito que o grande desafio da nossa época terá um desfecho positivo. A irracionalidade do sistema na sua forma última de capitalismo imperial de dominação planetária tende a accionar mecanismos cuja acção interna e externa, complementares, contribuirá para apressar a sua implosão.
Tomar consciência de que o projecto de sociedade robotizada que nos querem impor é tão medonho como o do III Reich é premissa da dinamização da luta em escala universal.
Nesse sentido os povos do Iraque e do Afeganistão, recusando a ocupação, abalam os alicerces da doutrina das guerras preventivas, emperram o funcionamento da engrenagem militar e iluminam o ventre da crise do sistema. Ao demonstrarem que é possível resistir nas circunstâncias mais adversas, apontam um rumo à humanidade. O alarido levantado pela prisão de Saddam Hussein é enganador. Washington pretende através de um show mediático persuadir a humanidade de que alcançou uma enorme vitória que alterou a situação criada pela ocupação do Iraque. Mas tudo indica que a resistência tende ali, pelo contrário, a intensificar-se.
Sendo hoje estrutural a crise do capitalismo nos EUA - como demonstra István Mészaros - ela vai agravar-se, o que reforçará a agressividade do sistema de poder imperial. Cabe às forças progressistas contribuir para que, dialecticamente, a resistência se amplie também, diversificando-se. A grande maré de condenação das guerras e de solidariedade com as suas vítimas não deve ter refluxo. Mantê-la num nível sempre alto é exigência numa luta cuja globalização aparece como réplica à imposta pelo inimigo.
A solidariedade aos povos que resistem – e o da Palestina aparece na linha da
frente ao lado dos do Iraque e do Afeganistão – manifesta-se de maneiras muito diferentes nos países industrializados cujos governos são cúmplices do sistema de poder imperial (em alguns casos, como os da Inglaterra, Espanha e Itália, sócios na agressão), e nos países do Terceiro Mundo.
Choque com o imperialismo
É minha convicção que na América Latina o choque entre os povos e o pólo imperial se vai intensificar. A vulnerabilidade do sistema será mais transparente. Contribuirão para isso o aprofundamento da crise estrutural do capitalismo nos EUA (gigantescos défices fiscais, da conta corrente, da balança comercial, desvalorização do dólar, não afluxo de capitais estrangeiros, etc.), a condenação crescente das guerras na Ásia, e o avolumar de tensões com a União Europeia. O inevitável esforço de Washington para impor a ALCA em 2005 provocará a correspondente reacção dos povos contra o projecto de recolonização imperial.
Seria pura especulação prever que políticas, num ano eleitoral, desenvolverá a actual administração norte-americana relativamente à Venezuela e à Colômbia. A perigosa tentação da intervenção directa no último desses países será contrariada pelo temor de um fracasso militar cujas consequências seriam devastadoras para Washington.
Mas tudo indica que as dificuldades crescentes enfrentadas pelo sistema de dominação imperial em todo o mundo funcionarão como um estimulo ao projecto bolivariano que Chavez, acossado por uma oposição feroz e golpista, procura, numa conjuntura muito difícil, levar adiante.
Simultaneamente, na vizinha Colômbia, o sonho de Uribe Vélez – representante da oligarquia mais anacrónica do Hemisfério - desfez-se no confronto com a realidade. As FARC – hoje um exército de 18 000 homens que combate em 60 frentes - resistiram a todas as ofensivas que visavam aniquilá-las. O discurso que apresentava a destruição da insurgência guerrilheira pelas armas, repetindo o dos generais do Pentágono no Vietname, foi desmoralizado no terreno.
À demonstração de que a resistência pelas armas é ainda possível em circunstâncias históricas e geográficas muito específicas soma-se a certeza de que a intervenção das massas no processo político poderá pesar decisivamente no choque entre a América Latina e o sistema de poder imperial dos EUA.
Não cabe neste breve texto esboçar mesmo sumariamente as formas que a resistência tende a assumir nos países a Sul do rio Bravo. Mas os acontecimentos da Bolívia chamaram a atenção para uma evidência. A teimosa insistência imperial norte-americana em impor políticas neoliberais conduzirá a fracassos em cadeia. A capitulação de governos eleitos com o apoio de grandes maiorias poderá, como aconteceu no Equador com Lúcio Gutierrez, gerar ilusões. Mas a derrota final espera essas manobras num Continente onde os povos têm uma sede insaciável de participar na construção do seu futuro.
Opções inadiáveis
É neste caldeirão efervescente que o povo brasileiro será em 2004 confrontado com a necessidade de opções inadiáveis. O discurso oficial do governo não consegue já ocultar o malogro de uma estratégia que invocando a necessidade de pôr a casa em ordem e evitar o descalabro económico e financeiro, foi gradualmente cimentada em concessões inaceitáveis ao imperialismo. Um banqueiro norte-americano mascarado de brasileiro à frente do Banco Central e políticos como Palocci, Furlan, e outros, assessorados por uma corte de oportunistas trataram de garantir a continuidade de uma estratégia neoliberal, enquanto prometiam para o amanhã imediato a política social que era o cerne do compromisso de Lula.
0 Brasil cujo leme é controlado por políticos que rumam contra o sentido da historia terá, assim o espero, que assumir no Continente o papel insubstituível para o qual está vocacionado.
Não há discurso táctico que possa justificar, na crise de civilização contemporânea, «políticas de transição» que servem aos objectivos de uma estratégia que encaminha a humanidade para o abismo.
Resistir, com a cabeça fria, com prudência, mas firmeza e lucidez é um dever para os povos da América Latina, tão directamente ameaçados. Cada qual de acordo com a sua situação específica. Cuba, por exemplo, resiste heroicamente há 45 anos.
A coragem demonstrada num contexto de tragédia pelos povos do Iraque, do Afeganistão, da Palestina, lembra-nos de que o inimigo é mais vulnerável do que parece e que cedo ou tarde todos os povos terão de intervir na batalha, em defesa da sua própria sobrevivência.
Tomar consciência de que o projecto de sociedade robotizada que nos querem impor é tão medonho como o do III Reich é premissa da dinamização da luta em escala universal.
Nesse sentido os povos do Iraque e do Afeganistão, recusando a ocupação, abalam os alicerces da doutrina das guerras preventivas, emperram o funcionamento da engrenagem militar e iluminam o ventre da crise do sistema. Ao demonstrarem que é possível resistir nas circunstâncias mais adversas, apontam um rumo à humanidade. O alarido levantado pela prisão de Saddam Hussein é enganador. Washington pretende através de um show mediático persuadir a humanidade de que alcançou uma enorme vitória que alterou a situação criada pela ocupação do Iraque. Mas tudo indica que a resistência tende ali, pelo contrário, a intensificar-se.
Sendo hoje estrutural a crise do capitalismo nos EUA - como demonstra István Mészaros - ela vai agravar-se, o que reforçará a agressividade do sistema de poder imperial. Cabe às forças progressistas contribuir para que, dialecticamente, a resistência se amplie também, diversificando-se. A grande maré de condenação das guerras e de solidariedade com as suas vítimas não deve ter refluxo. Mantê-la num nível sempre alto é exigência numa luta cuja globalização aparece como réplica à imposta pelo inimigo.
A solidariedade aos povos que resistem – e o da Palestina aparece na linha da
frente ao lado dos do Iraque e do Afeganistão – manifesta-se de maneiras muito diferentes nos países industrializados cujos governos são cúmplices do sistema de poder imperial (em alguns casos, como os da Inglaterra, Espanha e Itália, sócios na agressão), e nos países do Terceiro Mundo.
Choque com o imperialismo
É minha convicção que na América Latina o choque entre os povos e o pólo imperial se vai intensificar. A vulnerabilidade do sistema será mais transparente. Contribuirão para isso o aprofundamento da crise estrutural do capitalismo nos EUA (gigantescos défices fiscais, da conta corrente, da balança comercial, desvalorização do dólar, não afluxo de capitais estrangeiros, etc.), a condenação crescente das guerras na Ásia, e o avolumar de tensões com a União Europeia. O inevitável esforço de Washington para impor a ALCA em 2005 provocará a correspondente reacção dos povos contra o projecto de recolonização imperial.
Seria pura especulação prever que políticas, num ano eleitoral, desenvolverá a actual administração norte-americana relativamente à Venezuela e à Colômbia. A perigosa tentação da intervenção directa no último desses países será contrariada pelo temor de um fracasso militar cujas consequências seriam devastadoras para Washington.
Mas tudo indica que as dificuldades crescentes enfrentadas pelo sistema de dominação imperial em todo o mundo funcionarão como um estimulo ao projecto bolivariano que Chavez, acossado por uma oposição feroz e golpista, procura, numa conjuntura muito difícil, levar adiante.
Simultaneamente, na vizinha Colômbia, o sonho de Uribe Vélez – representante da oligarquia mais anacrónica do Hemisfério - desfez-se no confronto com a realidade. As FARC – hoje um exército de 18 000 homens que combate em 60 frentes - resistiram a todas as ofensivas que visavam aniquilá-las. O discurso que apresentava a destruição da insurgência guerrilheira pelas armas, repetindo o dos generais do Pentágono no Vietname, foi desmoralizado no terreno.
À demonstração de que a resistência pelas armas é ainda possível em circunstâncias históricas e geográficas muito específicas soma-se a certeza de que a intervenção das massas no processo político poderá pesar decisivamente no choque entre a América Latina e o sistema de poder imperial dos EUA.
Não cabe neste breve texto esboçar mesmo sumariamente as formas que a resistência tende a assumir nos países a Sul do rio Bravo. Mas os acontecimentos da Bolívia chamaram a atenção para uma evidência. A teimosa insistência imperial norte-americana em impor políticas neoliberais conduzirá a fracassos em cadeia. A capitulação de governos eleitos com o apoio de grandes maiorias poderá, como aconteceu no Equador com Lúcio Gutierrez, gerar ilusões. Mas a derrota final espera essas manobras num Continente onde os povos têm uma sede insaciável de participar na construção do seu futuro.
Opções inadiáveis
É neste caldeirão efervescente que o povo brasileiro será em 2004 confrontado com a necessidade de opções inadiáveis. O discurso oficial do governo não consegue já ocultar o malogro de uma estratégia que invocando a necessidade de pôr a casa em ordem e evitar o descalabro económico e financeiro, foi gradualmente cimentada em concessões inaceitáveis ao imperialismo. Um banqueiro norte-americano mascarado de brasileiro à frente do Banco Central e políticos como Palocci, Furlan, e outros, assessorados por uma corte de oportunistas trataram de garantir a continuidade de uma estratégia neoliberal, enquanto prometiam para o amanhã imediato a política social que era o cerne do compromisso de Lula.
0 Brasil cujo leme é controlado por políticos que rumam contra o sentido da historia terá, assim o espero, que assumir no Continente o papel insubstituível para o qual está vocacionado.
Não há discurso táctico que possa justificar, na crise de civilização contemporânea, «políticas de transição» que servem aos objectivos de uma estratégia que encaminha a humanidade para o abismo.
Resistir, com a cabeça fria, com prudência, mas firmeza e lucidez é um dever para os povos da América Latina, tão directamente ameaçados. Cada qual de acordo com a sua situação específica. Cuba, por exemplo, resiste heroicamente há 45 anos.
A coragem demonstrada num contexto de tragédia pelos povos do Iraque, do Afeganistão, da Palestina, lembra-nos de que o inimigo é mais vulnerável do que parece e que cedo ou tarde todos os povos terão de intervir na batalha, em defesa da sua própria sobrevivência.