O Capital e a crise

Ricardo Oliveira
No final de 2003, ao ser conhecida, através da comunicação social, a proposta de aumento do Salário Mínimo Nacional em 2,5%; após vários anos de redução de poder de compra; no ano em que as épocas de saldos foram antecipadas no comércio tradicional; e em plena época de apelos ao consumismo, vem a propósito escrever sobre algo que, como em relação à História, muitos anunciaram o seu fim.
O domínio das teoria e práticas liberais, resultado da evolução do modo de produção capitalista, está a procurar, nos centros do capitalismo, a redução dos rendimentos dos trabalhadores. Essa redução dá-se, directa e indirectamente, tanto, por via dos acordos de empresa e do novo desfio sindical reduzindo/não actualizando os salários, como por via dos ataques ao Estado providência.
No programas eleitorais do PSD e do PS em 2001, no programa de governo do PSD/CDS-PP (para não irmos mais longe no tempo) e em textos, entretanto publicados, surgem, com bastante frequência, referências à necessidade de moralizar a atribuição de subsídio de doença e desemprego, a aplicação das leis laborais, a elevada taxa de reprovação no ensino superior, os gastos na saúde e a actividade dos funcionários públicos, a par da inevitabilidade da falência dos sistemas públicos de segurança social.
Estas supostas moralizações e preocupações aparecem, não raras vezes, como forma de disfarçar intenções e opções políticas e ideológicas, bem visíveis em declarações como as de Nogueira Leite (Público, 25 de Novembro de 2003) em que «face à elevada despesa pública, o país está “destinado a ter cargas fiscais elevadas”», acrescentando que a «consequência é que [estes países]“(...) tenderão a ser destinos menos atraentes para a localização das actividades económicas”».
Por vezes, os objectivos ainda são mais claros, como numa pequena notícia, da mesma edição do referido jornal, em que «o quadro do FMI [Ajai Chopra] (...) elogiou o pacote de reformas apresentado pelo Governo de Schroeder, por procurar atacar o que considerou ser a “rigidez” do mercado de trabalho e o “nível elevado” dos subsídios de desemprego».
Procuram tornar liberal até onde possível o mercado da mercadoria força de trabalho (ou do factor de produção trabalho) e outros mercados. Ao privatizar o ensino, a saúde, a segurança social, recursos (ou rendimentos) públicos deixam de estar acessíveis aos trabalhadores e obrigam-nos a gastar mais.
O exemplo do Leste

Tomemos como exemplo os países do Leste Europeu. Antes do colapso do socialismo os salários eram baixos, mas não tinham de responder às necessidades de habitação, saúde, educação e outros direitos sociais. Entretanto, com a privatização desses serviços e como os rendimentos dos trabalhadores não acompanharam o aumento que esses custos passaram a significar, a pobreza cresceu e a emigração explodiu.
Os ganhos dos rendimentos de alguns poucos, formando-se uma nova classe e uma camada intermédia, não compensam o aumento da pobreza.
Simultaneamente ao ataque aos rendimentos dos trabalhadores, verificamos um processo de deslocação, de parte considerável da produção, para paragens em que os salários são muito inferiores, com o objectivo, ao nível da empresa, em diminuir os custos, fazendo face à redução das margens de lucro, aumentando-a até, e compensando a evolução da composição orgânica do capital.
Esta deslocação da produção para as periferias do capitalismo gera desemprego nos centros. Ou seja, diminuem os rendimentos dos trabalhadores.
Este fenómeno acaba por ser dado como justificação para a urgência de políticas que reduzam os custos do trabalho (salários) e as despesas do Estado com as massas trabalhadoras, baixando os impostos sobre o capital e outras obrigações patronais, como é o caso da segurança social. E assim, ataca-se ainda mais os rendimentos das massas.
Os mesmos que defendem e teorizam os ganhos de competitividade são os que, em defesa exclusiva dos interesses do grande patronato, anunciam a necessidade de transferir fábricas para o Magrebre, Leste da Europa e outras regiões de baixos salários e fortes benefícios fiscais. Tal qual, um antigo ministro e barão do PSD afirmou recentemente, numa viagem do Presidente da República à Tunísia.
Nesta fase temos que colocar três questões:
- Os ganhos dos rendimentos dos trabalhadores das periferias do capitalismo (a sua assalariação em muitos casos) compensam estas deslocações?
- A diminuição dos rendimentos dos trabalhadores directa e indirectamente por via de políticas neoliberais é compensadas com os ganhos dos trabalhadores nas periferias?
- Será que estas perspectivas locais não estão a pôr em causa a abordagem local?
Nos dias de hoje, estas questões estão no centro do debate ideológico.
Sectores reformistas e mesmo alguns reaccionários, defendem o regresso do Keynesianismo. Por si só, trata-se duma demonstração de fraqueza do capitalismo. No entanto, hoje não existe o campo socialista. A União Soviética dos anos 30 e o pós-guerra do século passado com a ascensão revolucionária já não existem. Os trabalhadores não têm uma referência. Os capitalistas perderam o seu inimigo organizado e à altura.

À procura de novas respostas

Após o recurso à expansão dos mercados, em especial da mão-de-obra altamente qualificada dos antigos países socialistas e perante uma população africana que o capitalismo mantém pouco escolarizada, novas respostas têm que ser encontradas.
O constante recurso à guerra; a militarização da economia que previa Marx e o expansionismo neocolonializador dos Estados Unidos da América e da União Europeia, militarizado e violento, não serão uma face de um novo e desvirtuado Keynesianismo?
Os investimentos em obras públicas, os estádios do Euro 2004 (em Portugal) e do Mundial 2006 (na Alemanha), os Jogos Olímpicos na Grécia, a Copa da América em Valência, o novo negócio da captação e fornecimento da água, as novas redes de distribuição de energia e de comunicações, a Rede Transeuropeia de Alta Velocidade, o desenvolvimento da indústria militar, sempre nas mãos do grande capital, não serão uma face desse novo Keynesianismo?
E as teorias em torno de um novo emprego social, de apoio à família e à terceira idade, que despontam nos centros do capitalismo? Num formato muito em voga, o autoemprego, sempre precário, resulta da necessidade de garantir alguns rendimentos às massas trabalhadoras. Desmantelando os serviços que o Estado ainda vai garantindo, o reformismo social democrata e a direita caritativa teorizam as novas oportunidades e desafios dos nossos tempos.
Há cerca de um ano, numa reunião, uma camarada colocou a seguinte hipótese:
- Nestas condições, não estaremos perante o surgimento de um novo Keynesianismo de direita, mesmo fascista e violento?
Este paradigma da economia, no plano mundial, tem claras evidências em Portugal, cuja política do actual governo, com o acordo do PS no fundamental, é exemplo mais que claro.
Enquanto o ministro Bagão Félix prossegue a sua missão de moralizar a atribuição do subsídio de desemprego, o mesmo encontra nos despedimentos massivos por mútuo acordo forçado a solução para melhorar o desempenho contabilístico dos novos grandes grupos privados (as grandes empresas públicas entretanto privatizadas pelos governos do PS, do PSD, sós ou acompanhados pelo CDS-PP).
Como forma de tornar o grande capital mais atractivo, comprometem o equilíbrio financeiro da Segurança Social, atribuindo subsídio de desemprego e reformas antecipadas a trabalhadores nas posses das suas capacidades, e apregoam programas de promoção do empreendorismo ou de ocupação de desempregados, contratando-os para fornecerem serviços à antiga empresa, nalguns casos, ou colocando-os precariamente em serviços do estado.
Embora em todo este texto me refira exclusivamente a questões económicas, as suas consequências revelam-se também no plano político, social e cultural. Alguns projectos dos partidos do governo e declarações dos seus dirigentes vão nesse sentido.
O Partido Comunista Português, no seu debate e reflexão colectiva, deverá acompanhar e combater o desenvolvimento destas políticas e teorias. Combatê-las, conhecendo e não pondo de parte o que escolas defensoras do capitalismo propõem. No entanto temos que ter sempre presente o nosso património, a teoria marxista-leninista, a sua análise e propostas, a perspectiva revolucionária de intervir para transformar. A crise do capitalismo e as suas crises cíclicas deverá ser um dos temas de estudo a aprofundar pelo colectivo partidário.
Estas linhas pretenderam levantar questões. Também é importante. Revolucionário será encontrarmos as respostas.


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