As mistificações do PEC

Pedro Carvalho
Nunca se falou tanto do Pacto de Estabilidade – o PEC. As decisões do Conselho ECOFIN de 25 de Novembro passado, suspendendo na prática a aplicação do PEC à França e à Alemanha, suscitaram amplas reacções ao nível da União Europeia (UE) e em Portugal, onde a ministra das Finanças, Ferreira leite, deu mais uma vez provas da sua irracional «obsessão» pelo PEC.
De um momento para o outro caiu o papão das multas. As grandes potências da UE davam prioridade ao crescimento económico e ao emprego em detrimento do cumprimento de um PEC, que as arrastaria para recessão. O exemplo de Portugal era esclarecedor – recessão, divergência económica e desemprego.
Desta história, que não acabou aqui, podemos desde já reter algumas coisas: o PCP foi a única força política coerente na crítica e rejeição do PEC desde a sua criação; quem manda na UE são as grandes potências; o Governo português tinha possibilidade de seguir outro rumo caso não visasse os objectivos políticos internos que são conhecidos; por último, nada é irreversível ou inevitável, a não ser a morte. Contudo, tendo em conta o ruído de fundo em torno das contas públicas e do PEC, importa clarificar algumas das principais mistificações e lembrar os verdadeiros objectivos do Pacto de Estabilidade.
Os defensores do PEC afirmam que este é uma peça chave para garantir a estabilidade dos preços, manter taxas de juro baixas, proteger os pequenos países do despesismo dos grandes, elegendo a consolidação orçamental como um objectivo essencial. O conceito teórico principal é que orçamentos expansionistas conduzem ao aumento dos preços, o que por sua vez torna inevitável a subida das taxas de juro para controlar a inflação.
É óbvio que ninguém é favorável ao descontrolo das contas públicas ou defende défices excessivos. A consolidação orçamental, despida dos preconceitos ideológicos que lhe querem impor, não é em si uma coisa má. Mas a questão está posta ao contrário porque o saldo das contas públicas (diferença entre o total de receitas e total de despesas), não é um fim em si mesmo, mas o resultado da aplicação e das sinergias da política económica.
Mais uma vez, confunde-se o real com o nominal. A política económica dos estados tem de dar resposta às necessidades da população e à melhoria das suas condições de vida, à produção e ao trabalho, à criação de riqueza. Tem de contribuir para o aumento da produtividade, a redução do desemprego e a diminuição das desigualdades de rendimento.
O orçamento é uma peça estruturante das opções de política económica de um Estado, sendo o consumo e o investimento público, assim como os impostos, os seus instrumentos. O orçamento resume assim as escolhas de curto, médio e longo prazo, sendo o défice o mero resultado dessas escolhas, afectado pelo ciclo económico.
Quanto à consolidação orçamental, deve-se primeiro notar que o endividamento público não é em si mau se sustentar despesas e investimento que produzam um efeito multiplicador e reprodutivo na receita do Estado e que, ao mesmo tempo, contribuam para o desenvolvimento económico e social. Por outro lado, a política orçamental deve garantir a eficiência dos estabilizadores automáticos e, nomeadamente num período de recessão ou de pré-recessão, deve ser expansionista. Mesmo que tal provoque um aumento do défice das contas públicas, no curto e médio prazo garantirá as condições para sustentar a retoma económica e evitar custos económicos e sociais mais amplos, como o desemprego (veja-se actualmente o exemplo das políticas orçamentais expansionistas dos EUA e do Japão).

Despesa a mais, receita a menos

É frequente ouvir-se dizer que Portugal tem despesa pública a mais, mas a verdade é que o peso da despesa pública total no nosso produto é inferior à média comunitária (ver gráfico 1). Isto apesar de o nosso país ter uma clara necessidade de possuir um sector público forte, dada a nossa dimensão económica, a carência de capital e as insuficiências do sector privado.
Neste contexto, temos de salientar dois factos: o primeiro é que a despesa pública cresceu sistematicamente desde 1971 na UE, invertendo-se a situação na década de 90 (ver quadro); o segundo é que Portugal acompanhou esta tendência, mas partiu de um nível muito baixo - o peso da despesa pública no começo da década de 70 rondava os 20 por cento do Produto Interno Bruto (ver quadro).
O problema do País prende-se, no essencial, com a receita fiscal. É preciso lembrar que mais de um quatro da nossa economia é de natureza informal, ou seja, não declarada ao fisco, o que tem efeitos negativos não só na nossa produtividade, mas também na receita fiscal. A isto temos de adicionar um problema agravado de fraude e evasão fiscal, o facto de mais de dois terços das empresas não pagarem impostos, as volumosas dívidas ao fisco e à segurança social, os benefícios e isenções fiscais (nomeadamente no sector financeiro), a delapidação do património público, as privatizações de sectores lucrativos do Estado e a destruição do Sector Empresarial do Estado. São assim hipotecadas receitas futuras e eixos estruturantes da nossa economia (centros de decisão nacionais), a troco de encaixes financeiros de curto prazo.
Mas falar de consolidação orçamental, implica também analisar as prioridades da despesa pública. Temos de perguntar ao governo qual a contribuição para a consolidação orçamental da taxa efectiva de imposição fiscal da Banca, das isenções fiscais do off-shore da Madeira e da recente proposta de redução do IRC (mais-valias nem vê-las!)? Temos de perguntar porque é que se corta na despesa social, no investimento público e nos trabalhadores do sector público?
Não podemos igualmente perder de vista que o défice é um cálculo contabilístico/estatístico. Ao contrário do que se possa pensar, o PEC não trouxe mais transparência às contas públicas, levou sim a um aumento da contabilidade criativa dos governos, cá dentro e pela UE, para apresentar défices dentro dos limites fixados. Portugal é um exemplo de que vale tudo para apresentar um défice, neste caso, com a precisão cómica de 2,944 por cento do PIB em 2003. Não só as regras de contabilidade pública se alteram e com elas o resultado do défice, como outras manobras são criadas, desde o recente saco azul da titularização das dívidas fiscais (que mostra as dificuldades de cobrança da máquina fiscal), à inclusão do fundo de pensões dos CTT, que equivale a dois por cento do PIB. Sem estas receitas extraordinárias, o défice público real atinge os cinco por cento.

O défice, a inflação e os custos

Em relação à estabilidade dos preços, importa lembrar que, apesar do aumento dos défices públicos na UE e em Portugal, a inflação mantém-se a níveis historicamente baixos e as previsões apontam para uma descida.
Também a análise da relação entre o défice público e a inflação, nos últimos 35 anos,
não permite concluir que o aumento do défice conduz automaticamente ao aumento da inflação. A correlação entre estas duas variáveis para a UE, Portugal e Alemanha, é praticamente nula e chegamos a uma conclusão semelhante se tentarmos a mesma relação entre o défice alemão e português na inflação comunitária.
Mas mesmo que se existisse uma relação directa, teríamos de ponderar os efeitos negativos que um eventual processo de desinflação acelerado teria no crescimento e no emprego, sobretudo num contexto de consolidação orçamental. A condução de uma política monetária restritiva – assente no euro – e de uma política orçamental restritiva – assente do PEC – tem impactos negativos sobre o crescimento económico e propicia o surgimento de condições recessivas, nomeadamente em países com economias mais frágeis e cujo esforço de convergência nominal exigido era maior, como Portugal. A crise económica de 1991-1993 mostra bem o resultado destas políticas com o desemprego a atingir níveis históricos na UE e em Portugal. Se analisarmos as últimas três décadas notámos que o processo de desinflação e de consolidação orçamental foi acompanhado de uma desaceleração do crescimento económico de década para década.

Objectivos do PEC

O PEC (como o euro) tem sobretudo objectivos político-ideológicos, sendo mais um instrumento de classe ao serviço do grande capital. O PEC está orientado contra o sector público, contra o papel e peso do Estado na economia, com base no falso pressuposto de que os privados gerem melhor e que o tipo de propriedade determina a qualidade da gestão. Sem qualquer justificação económica, esta ideia tem como único intuito de entregar as partes mais lucrativas do sector público ao grande capital.
O PEC é ainda utilizado como pretexto para as políticas anti-laboriais, de redução de direitos e salários, promovendo a flexibilização e precarização do trabalho, facilitando os despedimentos, apresentados como o ónus dos ajustamentos económicos impostos por uma política orçamental e monetária dita «rigorosa». O Pacto é ainda um meio para aprofundar a integração política europeia e um instrumento de concertação capitalista a nível europeu, como embrião de um futuro governo económico europeu.
A rigidez orçamental e monetária imposta pelo PEC e o euro, não são só uma limitação da soberania económica, mas também um erro com amplos custos económicos e sociais, tendo em conta que, o grau de interdependência económica em que vivemos, exige que os estados disponham de o maior número possível de instrumentos de política económica.
Os Estados que compõem a UE tem níveis de desenvolvimento económico bastante diferenciados, tem histórias e culturas diferentes, tem administrações públicas com culturas diferentes, por isso as necessidades e as respostas de política económica serão diferentes, terão de ser adaptadas à realidade nacional de cada um.
Torna-se indispensável uma mudança profunda nos objectivos da política monetária e orçamental na UE e suas ramificações nacionais, que ponha em causa este liberalismo económico serôdio que sobrepõe o nominal – o financeiro – ao real – o produto do trabalho, que aponte para revalorização do trabalho e da produção. Neste contexto, o PEC é mais um instrumento de classe a que se precisa por cobro.
______

Pedro Carvalho é economista e do Secretariado de Apoio dos deputados do PCP ao PE.


Mais artigos de: Temas

O Capital e a crise

No final de 2003, ao ser conhecida, através da comunicação social, a proposta de aumento do Salário Mínimo Nacional em 2,5%; após vários anos de redução de poder de compra; no ano em que as épocas de saldos foram antecipadas no comércio tradicional; e em plena época de apelos ao consumismo, vem a propósito escrever sobre algo que, como em relação à História, muitos anunciaram o seu fim.

Reflexões a partir de uma conversa com um «jota»

Conversava com um camarada da «Jota» e a conversa começava a animar quando ele me disse: «É pá! Tenho de me ir embora porque amanhã tenho um teste de economia central...». Não o deixei partir assim, e quis saber que era isso da «economia central»... Embora a fugir, lá me explicou o suficiente para me deixar a pensar. E muito!

O desafio da América Latina

O ano 2004 encontra a humanidade colocada perante a alternativa sintetizada, noutro contexto histórico, por Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie. Não temos a menor ideia dos contornos que poderia assumir o socialismo do futuro. Mas a evolução da crise de civilização - a maior da história - fecha as saídas. Ou caminhamos para o abismo ou criamos condições para aprofundar a crise do capitalismo, inviabilizando a sua continuidade.

A falta de qualificação dos empresários portugueses

Uma das causas que tem sido apontada com frequência crescente para explicar o atraso do País é a baixa escolaridade e a baixa qualificação profissional da população empregada. Muitos pensam que tal situação se refere apenas aos trabalhadores.