A Bolívia em convulsão
Enquanto observadores da conjuntura internacional, não podemos deixar de registar a evolução da «convulsão» política, económica e social que ocorre no vizinho país andino. Nesses tempos de integracionismo em alta, no Brasil e na América Latina, é importante compreender algumas das razões da intensa luta social que lá se trava.
Afinal, ininterruptamente, há três semanas, milhares de trabalhadores, camponeses, estudantes, indígenas e populares bloqueiam estradas e realizam enormes manifestações nas cidades bolivianas pedindo a renúncia do presidente Gonzalo Sanchez de Lozada. O motivo principal é a anunciada venda do gás in natura - de longe, a principal riqueza natural do país - a partir do Chile.
Na verdade, desde as últimas eleições presidenciais, realizadas a 30 de Junho de 2002, que o país está agitado. Na oportunidade, sectores à esquerda quase conquistaram a presidência boliviana. Os resultados foram apertados: Gonzalo Sanchez de Lozada, do partido de centro-direita Movimiento Nacionalista Revolucionário (MNR), obteve 22,5% dos votos. À esquerda, Evo Morales, líder indígena do Movimiento al Socialismo - MAS, obteve 20,9% e outro líder indígena, Felipe Quispe, do Movimiento Indígena Pachakuti, obteve 6,1% dos votos. Na soma, 22,5% do actual presidente contra 27% dos dois candidatos à esquerda. Mas, no sistema eleitoral local, ou o candidato obtém a vitória por maioria na primeira volta, ou o Congresso elege o presidente na segunda volta. Assim, apesar do excelente desempenho eleitoral dos candidatos da esquerda, na segunda volta os partidos à direita uniram-se e consagraram a vitória de Lozada. O crescimento da esquerda deve-se em muito ao facto de que 62% dos bolivianos são indígenas.
As actuais manifestações foram precedidas pelas mobilizações de 11 a 13 de Fevereiro, (o «Fevereiro Negro») que abalaram o país como agora, e ensanguentaram a Bolívia com a repressão e morte de cerca de 30 manifestantes.
O tema da exploração do gás é tema central da agenda nacional do país vizinho, e é parte considerável das receitas de exportação da Bolívia. As multinacionais que controlam o produto boliviano trabalhavam com duas vias principais de escoamento: o Brasil através do gasoduto Brasil-Bolívia, e a rota pelo Chile, visando alcançar o mercado da costa oeste dos Estados Unidos.
A venda do gás boliviano ao Brasil poderá ser inviabilizada pela recente descoberta, pela Petrobrás, de uma gigantesca reserva na região de Santos (SP), com 419 milhões de metros cúbicos de gás. Assim, o Brasil passa das actuais reservas de 236 milhões para 655 milhões de metros cúbicos de gás - mais que suficiente para abastecer o mercado interno actual, e mais, permite, com investimentos em infra-estruturas, fazer do gás uma importante matriz energética para o nosso desenvolvimento. O Brasil passa a ter a quarta reserva da América do Sul, atrás da Venezuela, Bolívia e Argentina, superando o Peru, que cai para o quinto lugar. Registe-se ainda que o acordo do Brasil com a Bolívia - firmado no governo FHC no auge da crise do «apagão» - foi um péssimo negócio para o país, que é obrigado a pagar uma quantia pré-estipulada à Bolívia, independente de consumir ou não o gás - produzindo prejuízos à Petrobrás. O gás brasileiro deverá custar 2,50 dólares por milhão de BTU (unidade de poder calorífico) contra 3,40 dólares actualmente pagos à Bolívia. A recente descoberta da Petrobrás causou grande apreensão na Bolívia.
A outra alternativa - gás via Chile para os EUA - é o motivo principal das manifestações em curso. Controlado por três multinacionais - BP, Repsol e BG - a exportação pelo Chile é um tema sensível e delicado, pois fere o orgulho nacional boliviano, já que a região foi objecto de guerra entre os dois países, no desejo dos bolivianos de terem acesso ao mar, na qual foram derrotados militarmente pelo Chile. Além disso, a grande bandeira dos manifestantes bolivianos é a nacionalização do gás e a industrialização do mesmo antes da exportação, com vista a agregar valor ao produto. O debate é central para a Bolívia, porque dessa decisão dependem, em grande parte, as perspectivas de desenvolvimento do pobre país sul-americano.
***
A greve geral iniciada em 30 de Setembro parece estar longe do fim. A luta está cada vez mais está radicalizada e as portas de uma «reconciliação» fechadas, inclusive por parte do governo de Lozada. Se o governo não ceder na nacionalização do gás e na revisão de sua exportação, a oposição tampouco deverá abrir mão da bandeira da renúncia de Lozada, segundo diversos analistas locais.
O último capítulo foi a proposta do prefeito de La Paz de se realizar um referendo nacional para decidir o tema do gás. A igreja católica já havia tentado intermediar negociações, sem sucesso.
Rumores dão conta que Lozada poderia decretar o estado de sítio ou mesmo apelar para um golpe de Estado, o que ameaça lançar o país numa guerra civil com importantes consequências para a luta dos povos latino-americanos pelo desenvolvimento e soberania.
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* Artigo publicado no diário brasileiro «Vermelho»
Afinal, ininterruptamente, há três semanas, milhares de trabalhadores, camponeses, estudantes, indígenas e populares bloqueiam estradas e realizam enormes manifestações nas cidades bolivianas pedindo a renúncia do presidente Gonzalo Sanchez de Lozada. O motivo principal é a anunciada venda do gás in natura - de longe, a principal riqueza natural do país - a partir do Chile.
Na verdade, desde as últimas eleições presidenciais, realizadas a 30 de Junho de 2002, que o país está agitado. Na oportunidade, sectores à esquerda quase conquistaram a presidência boliviana. Os resultados foram apertados: Gonzalo Sanchez de Lozada, do partido de centro-direita Movimiento Nacionalista Revolucionário (MNR), obteve 22,5% dos votos. À esquerda, Evo Morales, líder indígena do Movimiento al Socialismo - MAS, obteve 20,9% e outro líder indígena, Felipe Quispe, do Movimiento Indígena Pachakuti, obteve 6,1% dos votos. Na soma, 22,5% do actual presidente contra 27% dos dois candidatos à esquerda. Mas, no sistema eleitoral local, ou o candidato obtém a vitória por maioria na primeira volta, ou o Congresso elege o presidente na segunda volta. Assim, apesar do excelente desempenho eleitoral dos candidatos da esquerda, na segunda volta os partidos à direita uniram-se e consagraram a vitória de Lozada. O crescimento da esquerda deve-se em muito ao facto de que 62% dos bolivianos são indígenas.
As actuais manifestações foram precedidas pelas mobilizações de 11 a 13 de Fevereiro, (o «Fevereiro Negro») que abalaram o país como agora, e ensanguentaram a Bolívia com a repressão e morte de cerca de 30 manifestantes.
O tema da exploração do gás é tema central da agenda nacional do país vizinho, e é parte considerável das receitas de exportação da Bolívia. As multinacionais que controlam o produto boliviano trabalhavam com duas vias principais de escoamento: o Brasil através do gasoduto Brasil-Bolívia, e a rota pelo Chile, visando alcançar o mercado da costa oeste dos Estados Unidos.
A venda do gás boliviano ao Brasil poderá ser inviabilizada pela recente descoberta, pela Petrobrás, de uma gigantesca reserva na região de Santos (SP), com 419 milhões de metros cúbicos de gás. Assim, o Brasil passa das actuais reservas de 236 milhões para 655 milhões de metros cúbicos de gás - mais que suficiente para abastecer o mercado interno actual, e mais, permite, com investimentos em infra-estruturas, fazer do gás uma importante matriz energética para o nosso desenvolvimento. O Brasil passa a ter a quarta reserva da América do Sul, atrás da Venezuela, Bolívia e Argentina, superando o Peru, que cai para o quinto lugar. Registe-se ainda que o acordo do Brasil com a Bolívia - firmado no governo FHC no auge da crise do «apagão» - foi um péssimo negócio para o país, que é obrigado a pagar uma quantia pré-estipulada à Bolívia, independente de consumir ou não o gás - produzindo prejuízos à Petrobrás. O gás brasileiro deverá custar 2,50 dólares por milhão de BTU (unidade de poder calorífico) contra 3,40 dólares actualmente pagos à Bolívia. A recente descoberta da Petrobrás causou grande apreensão na Bolívia.
A outra alternativa - gás via Chile para os EUA - é o motivo principal das manifestações em curso. Controlado por três multinacionais - BP, Repsol e BG - a exportação pelo Chile é um tema sensível e delicado, pois fere o orgulho nacional boliviano, já que a região foi objecto de guerra entre os dois países, no desejo dos bolivianos de terem acesso ao mar, na qual foram derrotados militarmente pelo Chile. Além disso, a grande bandeira dos manifestantes bolivianos é a nacionalização do gás e a industrialização do mesmo antes da exportação, com vista a agregar valor ao produto. O debate é central para a Bolívia, porque dessa decisão dependem, em grande parte, as perspectivas de desenvolvimento do pobre país sul-americano.
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A greve geral iniciada em 30 de Setembro parece estar longe do fim. A luta está cada vez mais está radicalizada e as portas de uma «reconciliação» fechadas, inclusive por parte do governo de Lozada. Se o governo não ceder na nacionalização do gás e na revisão de sua exportação, a oposição tampouco deverá abrir mão da bandeira da renúncia de Lozada, segundo diversos analistas locais.
O último capítulo foi a proposta do prefeito de La Paz de se realizar um referendo nacional para decidir o tema do gás. A igreja católica já havia tentado intermediar negociações, sem sucesso.
Rumores dão conta que Lozada poderia decretar o estado de sítio ou mesmo apelar para um golpe de Estado, o que ameaça lançar o país numa guerra civil com importantes consequências para a luta dos povos latino-americanos pelo desenvolvimento e soberania.
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* Artigo publicado no diário brasileiro «Vermelho»