Quem paga a crise?

Jorge Cadima

E querem que sejam os trabalhadores e povos a pagar a factura...

A revista britânica The Economist publicou (20.09.03) um Suplemento dedicado à situação económica mundial. O tom é de profunda preocupação: «Os riscos de um crash do dólar ou de uma grave recessão mundial não são insignificantes». «Igualmente preocupante, e muito mais provável, é um surto de proteccionismo», de que «os anos 30 nos dão uma lição», aludindo-se à grande Crise do capitalismo no Século XX. Um dos aspectos que preocupa o Economist é que «a julgar pela sua retórica, os políticos de hoje têm pouca noção da desordem [mess] em que se encontra a economia mundial», havendo o perigo de a «economia global se tornar gravemente desorganizada [seriously unstuck] se não agirem rapidamente».

O que é que assusta tanto estes partidários do capitalismo neo-“liberal”, a ponto de implorarem pela intervenção do Estado para se salvarem (de si próprios)? É que a situação dos EUA não é sustentável, e ameaça desmoronar-se com consequências funestas para todo o planeta. Durante anos, a economia dos EUA viveu à custa daquilo que pretende proibir aos outros: endividamento constante, importações que excedem em muito as exportações, deficits nas contas correntes. «A taxa de endividamento é alta e continua a crescer», diz o Economist. «Um pouco acima dos 5% do PIB, o deficit das contas correntes é o maior na história do país» e está a «tornar-se preocupantemente grande». «Deficits persistentes nas contas correntes transformaram [os EUA] num devedor líquido em 1985, e desde então tem estado a afundar-se cada vez mais em dívidas. No final de 2002, a dívida externa líquida alcançou 25% do PIB». Esta «tendência de endividamento dos EUA tornar-se-á insustentável».

Para diminuir o seu endividamento, os EUA precisam de aumentar drasticamente as suas exportações e cortar nas suas importações (que hoje excedem em 500 mil milhões de dólares as exportações), perspectiva difícil num mundo em que os restantes pólos capitalistas (Japão, Europa) estão em crise séria. A queda do dólar face às restantes moedas poderia minorar o endividamento dos EUA, passando a batata quente para as restantes economias. Mas «muitos economistas consideram que [...] seria preciso cair 40% ou mais [...]. Esse tipo de desvalorização é muitíssimo arriscado. Quanto mais uma moeda cai, maior é o perigo de que venha a cair demasiado, e demasiado depressa». E «os riscos de um crash do dólar, a que se seguiria uma derrocada financeira, não são negligenciáveis». «A deflação é já uma realidade em vários países e paira ameaçadoramente sobre muitos outros».

Alguns comentários sobre este quadro negro: (i) o Economist não destaca que o «maior deficit das contas correntes na história dos EUA» é fruto da política de guerra (apoiada pelo Economist) da super-potência imperialista, na qual os EUA estão a gastar mais de 500 mil milhões de dólares por ano; (ii) em vez de apelar ao fim desse esbanjamento do dinheiro dos contribuintes dos EUA na morte e destruição, apela-se para «reformas estruturais» na Europa e Japão, ou seja, para mais políticas económicas e sociais do tipo que conduziram a esta situação; (iii) a actual situação económico-financeira dos EUA é a factura do que durante anos foi apresentado como o “boom mais longo da História” e a prova da “superioridade económica do capitalismo”, mas não passou, afinal, dum monumental regabofe; (iv) durante esses anos 80 e 90 “de oiro”, «o fosso entre ricos e pobres nos EUA mais do que duplicou [...] e no ano 2000, os 1% de americanos mais ricos detinham a maior percentagem do rendimento nacional pré-impostos de qualquer ano desde 1929» (tanto quanto os 40% mais pobres, International Herald Tribune, 26.9.03). Para não falar da tragédia de regiões inteiras do planeta.

Agora vêm dizer-nos que as dificuldades estão para começar. E querem que sejam os trabalhadores e povos a pagar a factura da pilhagem com que enriqueceram e das guerras com que querem continuar a enriquecer. Quem disse que acabou a luta de classes?


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