O manifesto

Anabela Fino
Quando a esmola é grande o pobre desconfia, dizia a minha avó e provavelmente todas as avós do mundo, que nestas coisas não há como o saber de experiência feito, pouco importando o dia, o local e a hora em que cada um se situa. Pois sucede que há cerca de uma semana, estando ocupada naquelas tarefas que dão pelo nome de domésticas, o ditado me ocorreu quando me entrou em casa, com aquela desfaçatez com que as ondas de rádio nos invadem a privacidade ao simples accionar de um botão, nada mais nada menos do que a voz de Mário Soares, ex-dirigente do PS, ex-primeiro-ministro, ex-presidente da República, deputado europeu e sei lá mais o quê, apelando a «uma ampla reflexão e debate sobre o actual estado da justiça penal».
Tratava-se de um manifesto, explicou o jornalista de serviço, subscrito por sete gradas personalidades da vida política nacional, que desta forma vinham manifestar a sua profunda - que digo eu? -, profundíssima preocupação com o estado na justiça em Portugal. O documento questiona a prisão preventiva, o segredo de justiça, as escutas telefónicas e exige que estas e outras questões sejam debatidas e esclarecidas «sob pena de as anomalias detectadas poderem conduzir à progressiva desvalorização do primado dos Direitos Humanos e ao declínio do Estado de Direito democrático».
Desconheço o efeito que o manifesto terá tido na opinião pública, mas pela parte que me toca confesso ter ficado tão perturbada que o copo que estava a lavar me saltou das mãos, fez uma tangente no prato que estava a secar e foi estatelar-se em cima duma travessa de estimação deixando tudo em fanicos. Foi aí que me lembrei da sentença da minha avó, que não era pessoa de esmolas e gostava de pensar pela própria cabeça.
Então um dos próceres da Nação, de mãos dadas com Freitas do Amaral, Leonor Beleza, Jorge Lacão, Octávio Garcia, Gomes Canotilho e Galvão Teles - por acaso todos juristas de formação -, vem dizer agora que as leis que ele próprio aprovou e promulgou não prestam?
É sabido que Mário Soares disse em tempos que «só os burros não mudam», o que nem sequer é verdade porque até os burros mudam... para um melhor fardo de palha, mas a que se deverá esta súbita mudança que faz tábua rasa das doutrinas anteriormente aprovadas? Numa palavra, o que é que mudou para que a justiça penal tenha deixado de servir aos seus fautores?
A resposta é tão evidente que até ofusca. Desde que há alguns anos a então ministra da Saúde, Leonor Beleza, esteve a contas com a justiça - livrando-se de as prestar por uma muito oportuna e trabalhada prescrição do caso -, que os sinos começaram a tocar a rebate nas capelas de certa classe política. Se tudo tem ficado por aí, do mal o menos. O pior é que não ficou, e eis senão quando distintas figuras da vida nacional começaram a ser chamadas à pedra, que é como quem diz a cair na alçada das leis que os seus pares haviam aprovado para a plebe.
As reacções não se fizeram esperar, mas uns resquícios de pudor aconselharam prudência, e a campanha para rever as regras do jogo ficou por uns tempos em banho-maria. Era no mínimo falta de decoro alterar a lei quando, baseados nessa mesma lei, os juizes investigavam figuras públicas, aplicando-lhes as medidas nunca antes contestadas quando os suspeitos eram ilustres desconhecidos. Mas o tempo corre e a impaciência cresce. É preciso agir, concluíram Soares e companhia. A solução é simples. Agita-se o fantasma da ameaça à democracia e já está. A justiça continua cega, mas só de um olho.


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