O dr. Vitorino irritou-me
Há dias ouvi na rádio a reportagem de uma sessão em que o dr. António Vitorino, membro da Comissão Europeia e muito falado ultimamente como eventual candidato a secretário geral da NATO, fazia a veemente apologia de uma constituição europeia supranacional e de um futuro federalista para a Europa, dizendo a certa altura: eu irrito-me quando ouço falar em soberania; para que serve a soberania no mundo de hoje?
Não garanto a textualidade da citação, mas garanto o seu conteúdo e a textualidade do «irrita-me quando ouço falar em soberania». E garanto-o, por que me irritou soberanamente a sobranceria com que o dr. Vitorino proclamou o seu desprezo pela soberania.
Talvez os altos cargos supranacionais para que se sente vocacionado tenham feito perder ao dr. Vitorino o respeito pelo valor que a soberania nacional tem para um povo e pela importância da soberania no próprio conteúdo de uma democracia autêntica. Mas mandaria o decoro que não exibisse tão irritadamente os seus íntimos intentos supranacionais. Foi talvez esse despudor o que mais me irritou.
Diz-se (e com razão) que a irritação é má conselheira. Mas a irritação do dr. Vitorino faz-me esquecer o conselho da sabedoria popular.
Então – andou aqui este povo há oito séculos a construir soberania; a conseguir unidade política nacional; a criar numa língua própria e bela que hoje é fala de contacto fraterno de vários povos; a defender fronteiras; a elaborar uma revolução de espingardas atravessadas por cravos vermelhos; a libertar-se de um «império» colonial que lhe escondia ser ele próprio colonizado; a escrever uma Constituição que orgulharia qualquer povo que pudesse tê-lo feito: e vem agora um dr. Vitorino, em tom que até quer aparentar moderna desenvoltura, proclamar que isso de soberania é chão que já deu uvas, e propor vendê-la no papel de embrulho de uma constituição supranacional? E diga lá dr. Vitorino: qual será a ração de liberdade que nessa constituição nos sobraria?
Enquanto a UE, com a elogiada participação dos drs. Vitorinos, nos foi arruinando a economia com leites, queijos, vacas, peixes e quejandos, refilámos mas muito civilizadamente. Mas agora, quando querem mandar como donos na nossa vida política e na liberdade secularmente conquistada pelo querer e saber de um povo, é caso para dizer: trancas à porta! É que, neste canto periférico da Europa, os canhões também sabem marchar. E talvez não seja descabida uma pergunta clássica, como resposta às profecias de mau agoiro do dr. Vitorino: onde estaria ele nessa grandiosa afirmação de soberania do nosso povo que foi o 25 de Abril?