Ainda os genéricos

Vitor Dias

No passado dia 13, no «Telejornal» da RTP/1, o Ministro da Saúde, em apenas quinze palavras, ofereceu inadvertidamente ao país um exemplar retrato das estranhas concepções que lhe povoam a cabeça e comandam as decisões.

Com efeito, estava-se no primeiro dia da entrada em vigor do novo regime de preços de referência dos medicamentos e o Ministro, depois de ter embalado na proclamação de baixas de preços, ainda que indirectamente não conseguiu fugir ao facto conhecido de, quando os médicos não autorizarem a substituição de medicamentos de marca por genéricos, os doentes passam a pagar mais do que pagavam anteriormente.

E foi nesse implícito contexto que o Ministro da Saúde arrumou a questão declarando que «se o médico não receitou, então é uma questão entre o médico e o utente».

Ou seja, ficámos a saber que Portugal tem hoje um Ministro da Saúde que não se importa de, com maior das displicências, projectar para a relação médico-doente um conflito sobre o preço dos medicamentos receitados, como se, além do mais, ele não soubesse que, na maioria dos casos ou situações, essa relação envolve uma parte dotada de particular autoridade e influência– o médico – e uma parte atingida pela reverência e pela fragilidade – o doente.

Ficámos a saber que Portugal tem hoje um Ministro da Saúde que prefere dar sentenças destas a ter de explicar porque é que no preâmbulo do Dec-Lei 271/2002 proclamou que «os cidadãos (...) devem dispor da possibilidade de, no acto de fornecimento ou dispensa dos medicamentos, lhes ser proporcionada a opção pelo medicamento com a mesma substância activa, segurança e valor terapêutico, ao menor preço» e logo no art.º 3.º daquele diploma já estava a negar esta liberdade de opção dos cidadãos, ao conceder aos médicos a possibilidade de não autorizarem a substituição de medicamentos de marca por genéricos.

Entendamo-nos: não há nenhuma razão para que o Estado fosse obrigado a suportar os custos financeiros derivados do facto de cidadãos, por atavismo ou pela mania de que o que é mais caro é necessariamente melhor, continuarem a preferir medicamentos de marca e não genéricos mais baratos.

Mas, de igual modo, não há nenhuma razão nem justificação para que, como o Governo impôs, os cidadãos sejam financeiramente penalizados e prejudicados por decisões e escolhas que não são suas e que, exceptuando sinceras opiniões de recorte científica que podem existir, bem podem ter origem noutros atavismos e interesses.

E é assim que, tudo visto, bem escusava o Ministro da Saúde de empurrar para os doentes o dever de coragem e firmeza que o seu Governo não sentiu face às pressões e posições da Ordem dos Médicos.



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