Intentos dissimulados

Pedro Guerreiro

A iniciativa franco-alemã salvaguarda os interesses monopolistas na UE

Em torno da chamada iniciativa franco-alemã e da apresentação pela Comissão Europeia de uma (nova) proposta de Quadro Financeiro Plurianual, para o período de 2021 a 2027, e de um denominado fundo de recuperação face aos impactos económicos e sociais do surto epidémico nos diferentes países que integram a União Europeia – apresentação que terá ocorrido ontem –, os arautos de serviço ressurgem acalentados, lançando loas à UE e dissimulando as suas políticas que atacam direitos, agravam desigualdades e acentuam assimetrias.

São múltiplas e significativas as questões suscitadas, nomeadamente pelas medidas já apresentadas pelos governos alemão e francês.

Uma primeira, a insistência na denominada soberania europeia. Um eufemismo sob o qual se procura dissimular um quadro institucional, objectivos e políticas da UE que visam assegurar o predomínio das suas grandes potências e a primazia dos interesses das suas transnacionais. Aliás, como a realidade comprova – e o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha recentemente recordou –, a soberania europeia significa, sobretudo, a salvaguarda no quadro da UE dos interesses políticos e económicos desta potência capitalista.

Do mesmo modo, a anunciada redução da dependência da UE constitui um artifício, mediante o qual se procuram ocultar as relações de dependência no seio da própria UE. Fundamentalmente, a Alemanha e a França pretendem contrariar uma sua qualquer dependência estratégica face a um país terceiro – particularmente, em relação à China –, ao mesmo tempo que tencionam preservar, e se possível acentuar, as relações de dependência de outros países, como os da chamada periferia na UE, relativamente a si.

É esclarecedora a dissertação dos governos alemão e francês quanto à necessidade de reforçar o controlo dos investimentos nos sectores considerados estratégicos aos níveis nacional e europeu (?) por parte dos investidores não europeus, ao mesmo tempo que dizem dever ser encorajados os investimentos (re)localizados na UE. Palavras que constituem um autêntico exercício de cinismo, na medida em que dissimulam a política de liberalização e privatização de sectores estratégicos que os governos alemão e francês promovem, em função dos interesses das suas transnacionais, relativamente a países terceiros, incluindo no quadro da UE.

De facto, trata-se do enunciado da política da coutada. Isto é, a Alemanha e a França sentenciam que os sectores estratégicos de um país que integre a UE estão, em primeiro lugar, sob a alçada e a prevalência dos grandes grupos económicos e financeiros ditos europeus, logo dos grupos monopolistas alemães e franceses.

Na mesma linha e não por acaso, a engendrada soberania económica e industrial da UE – eufemismo para o predomínio dos países com maior desenvolvimento económico e industrial – é imperativamente acompanhada do aprofundamento do Mercado Único (economia digital, energia, sector financeiro,…) e consequente concentração e domínio monopolista ao nível da UE.

É não perdendo de vista estes e outros objectivos explicitados pela Alemanha e a França, é tendo presente a natureza de classe da UE, assim como as inerentes e crescentes contradições que dela resultam, que deverão ser analisadas as propostas ontem apresentadas pela Comissão Europeia.




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