Milícias massacram Bani Walid
O cerco e bombardeamento de Bani Walid durante cerca de 20 dias poderá ter provocado uma catástrofe humanitária de dimensão só comparável ao período em que a Líbia foi agredida pela NATO. No ataque, lançado nas vésperas de se assinalar um ano sobre o assassinato de Muamar Kadafi, terão sido usadas armas não-convencionais, confirmando o carácter criminoso de uma operação de contornos punitivos contra quem recusa vassalagem ao novo regime e aos mercenários que dominam o país.
Armas não-convencionais terão sido usadas para fazer vergar Bani Walid
Na quinta-feira, 25, as brigadas envolvidas no assalto, provenientes da vizinha e rival cidade de Misrata, afirmavam dominar a quase totalidade da cidade, embora um chefe dos operacionais tenha admitido à AFP que persistiam bolsas de resistência. Nas ruas, os grupos armados dedicam-se a saquear e demolir os edifícios públicos e habitacionais que ficaram de pé ao cabo de cerca de 20 dias de assédio, constatou a mesma agência.
Fora da cidade, barreiras interpostas pelos atacantes nas estradas impedem que milhares de residentes regressem a Bani Walid. Os que foram obrigados a fugir dos bombardeamentos, descritos pelo New York Times como indiscriminados, são ameaçados de morte por tentarem forçar a passagem. Um número incalculável de pessoas permanece à entrada da cidade numa zona inóspita, desprovido de meios de subsistência ou ajuda humanitária.
O objectivo do bloqueio será, simultaneamente, prolongar o martírio dos habitantes e impedir que estes constatem as consequências da investida, durante a qual, noticiou domingo a Russia Today (RT), terão sido usadas armas não-convencionais. A dar força ao propósito de abafar o sucedido, está o facto de as comunicações na região terem sido cortadas logo às primeiras horas dos bombardeamentos.
A emissora russa publica relatos de familiares de populares de Bani Walid, exilados em Itália e no Egipto, e de um advogado que se manteve na cidade, para denunciar o uso de fósforo branco e gases tóxicos, e um balanço de vítimas mortais a rondar as 600 pessoas, sobretudo crianças, mulheres e idosos. O hospital local, que também não foi poupado pelos obuses, já não tem capacidade para assistir os milhares de feridos, uma vez que durante todo o período em que a cidade esteve sitiada e sob fogo não entraram nem víveres, nem medicamentos, nem combustível para os geradores que substituíram o fornecimento de energia eléctrica, cortada pelos mercenários a soldo das novas autoridades de Tripoli.
Logo a 8 de Outubro, a RT diz ter recebido um fax de um hospital de Bani Walid denunciando que estavam a chegar civis com sintomas de intoxicação por gás. «Indivíduos sem historial clínico aparecem com dificuldades respiratórias, arritmia cardíaca e espasmos musculares», bem como com «queixas de perturbações na visão e alterações de consciência», testemunhava-se no documento.
Para além da RT, tambem a Europa Press levantou a suspeita de que os grupos armados estavam a atacar Bani Walid usando armas proibidas. A 11 de Outubro, a agência citava testemunhos de médicos, difundidos pelo Libya Herald, que atestavam os bombardeamentos diários e o uso de gases tóxicos. «Começámos a receber pacientes com sintomas estranhos» que «não reagiam aos tratamentos comuns», por isso, «concluímos que estiveram expostos a algum tipo de gás», afirmou o dr. Taha Mohammed
Mohamed Sayeh, em nome do Congresso Líbio, argumentou que os grupos armados envolvidos no assalto a Bani Walid agiam mandatados pelo governo para capturar «uns rapazes que cometeram crimes e trazê-los à justiça». Questionado pela RT, defendeu também os milicianos das acusações de uso de armas não-convencionais, nomeadamente gases tóxicos, afirmando ter «plena confiança na rapaziada» cujos «valores são muito elevados».
Sayeh garantiu ainda que as brigadas estavam a cuidar das famílias de Bani Walid, negando, assim, que milhares de seres humanos se encontrassem em condições de sobrevivência extremas.
No passado dia 23, os EUA bloquearam nas Nações Unidas uma resolução apresentada pela Rússia que condenava a violência em Bani Walid e apelava à resolução pacífica do conflito.
Vingança criminosa
Com os contornos da catástrofe em Bani Walid por apurar cabalmente, o facto é que as autoridades líbias quiseram fazer da cidade um exemplo para todos os que se afirmem insurrectos perante a ordem vigente e os seus executantes.
Bani Walid cessou os combates aos mercenários ao serviço da NATO somente a 17 de Outubro de 2011, isto é, meses depois do início dos bombardeamentos da Aliança Atlântica e três dias antes do assassinato de Muamar Kadafi, a 20 de Outubro de 2011. A defesa da soberania do país não foi esquecida e muito menos perdoada, até porque o povo de Bani Walid tem, desde então, resistido com determinação à presença e ao arbítrio dos bandos armados.
O pretexto para o assalto «com todos os meios necessários», como sublinhou um dos responsáveis milicianos ouvido por agências noticiosas, foi a captura dos homens que raptaram e torturaram Omar Shaban, o «combatente» que se diz ter localizado e executado Kadafi em Sirte. Shaban morreu em França devido às alegadas torturas que sofreu em cativeiro.
A 30 de Setembro, Corriero della Sera revelou que, ao contrário da versão oficial, Kadafi foi assassinado por um membro dos serviços secretos gauleses. O diário italiano baseia-se em informações prestadas por fontes diplomáticas, segundo as quais o indivíduo ter-se-à infiltrado nas fileiras «rebeldes» por ordem do então presidente Nicolas Sarkozy.
A interpretaçãodos factos envolvendo a morte de Kadafi apresentada pelo jornal transalpino coincide com a que o ex-primeiro-ministro líbio, Mahmoud Jibril – figura grada do CNT que, entretanto, parece ter perdido preponderância –, relatou recentemente a uma televisão árabe.
A suspeita pouco parece ter importado e o presidente do Congresso líbio, Mohamed Megarief, foi repetindo a exigência de que os executantes de Omar Shaban fossem entregues a Tripoli pelos chefes tribais de Bani Walid até ao dia 5 de Outubro. Caso contrário usaria da força para os resgatar, o que, aliás, acabou por ordenar.
Forte resistência
Mohamed Megarief é neste momento a principal figura governante na Líbia. Enquanto presidente da assembleia, cabe-lhe a missão de assegurar a condução do país até à formação de um gabinete capaz de agradar às dezenas de grupos que se degladiam pelo poder no hemiciclo. Aparentemente acalenta assumir mais do que um papel transitório.
A partir da quarta semana de Setembro, na ressaca do atentado que a 11 desse mesmo mês matou o embaixador dos EUA, em Bengasi, proclamou uma campanha contra os grupos irregulares que recusem seguir as suas ordens. Deu 48 horas para se conformarem com o mando de Tripoli.
Por essa altura, em Bengasi, populares manifestaram-se contra os grupos armados e expulsaram mesmo alguns da cidade. Muitos voltaram. Como disse na altura Megarief, é preciso saber distinguir o são do pernicioso.
Megarief sabe que não pode hostilizar as milícias, limitou-se a acompanhar o descontentamento das massas, espezinhadas diariamente pelos mercenários.
O verdadeiro foco do presidente do parlamento é a chamada resistência verde, que cada vez mais é referida como estando a ganhar terreno no país. Os partidários de Kadafi têm sido apontados como responsáveis por vários atentados contra altas figuras da situação e traidores vira-casacas, alguns dos quais acabaram mesmo por morrer.
A ocultação do reforço da resistência verde só foi quebrada agora por Megarief para justificar o criminoso assalto a Bani Walid.
A semana passada, o New York Times informava que o povo líbio estava há dias em polvorosa com a investida contra a cidade. A Reuters noticiava que, em Tripoli, centenas de pessoas haviam tentado invadir o parlamento em protesto contra o assalto. Simultaneamente, em Bengasi, populares terão invadido um canal de televisão, revoltados com a promoção descarada dos mercenários e a ocultação do massacre.
Nesses mesmos dias, Megarief veio alertar que os focos de resistência pró-revolução verde ainda perduram e que, por isso, «a limpeza do país não estava completa».