O sol e a peneira
A eleição de Trump terá deixado Manuel Carvalho duplamente desconsolado. Está, como diz o povo, que nem pode! Primeiro porque, como confessa, tem mais dificuldade em «dizer mal de Xi ou de Putin», exercício que lhe consome parte significativa do seu labor jornalístico e fulgor intelectual. Depois, porque pressagia, angustiado, o ruir desse referencial que vislumbra nos EUA como sendo o sol da terra, verdadeiro farol de «virtudes democráticas», outrora radioso mas agora obscurecido pelas nuvens que a nova Administração trará.
Convenhamos que para quem propagandeia sem pudor os encantos dessa chamada «civilização ocidental» – em cujos valores se recria o espírito de cruzadas com o desbaratar de infiéis nesse exercício de selvajaria capitalista que a política externa dos EUA revela, e a que Manuel Carvalho não hesita em apresentar como «força do bem» –, o estilo do novo inquilino da Casa Branca atrapalha. Mas como a esperança será sempre a última coisa a morrer, o que o agarra ao sonho americano é que, como diz, Trump possa ser «um incidente no percurso da história dessa democracia radicada na prosperidade» (para aqueles 1% dos oligarcas que detêm 50% da riqueza total!), prenhe de virtudes tão democráticas como as que se descortinam num sistema eleitoral em que não só se ganha tendo menos votos (sem qualquer risco de reconhecimento por outros do presidente não eleito) como assegura 100% do mandatos aos que, ainda que disfarçados entre burros e elefantes, bem se podiam apresentar como partido único.
Não vá haver quem naufrague nas suas convicções pró-americanas e aí temos Manuel Carvalho proclamando que o «espírito da América não morreu», apelando à União Europeia para que lance a boia de salvação que haveria de manter à tona da água o que a peso de chumbo o pior que o capitalismo engendra, quer deste quer do outro lado do Atlântico. Barco ao fundo! Talvez porque detentor de menor exigência na avaliação da condição humana aí temos o ex-director do Público com o seu toque de saudade a ver regressar aqueles que designa como «homens bons» tendo certamente em mente Reagan, Bush pai e filho, Clinton, Obama ou Biden, com o seu cortejo de bem fazer guerras e espalhar morte do Iraque à Líbia, da Jugoslávia à Palestina.