As percepções e o reaccionarismo
O último fim-de-semana foi mais um exemplo de refinada manipulação mediática ao serviço de uma descarada promoção dos valores reaccionários, retrógrados e xenófobos. No sábado, os directos e as peças noticiosas televisivas optaram por reduzir a manifestação contra o racismo em Lisboa – com o significado que em si assumia – ao padrão em que o primeiro-ministro Montenegro a procurou fixar: uma disputa entre “extremos”.
Seja nos ecrãs divididos nos directos, seja na construção de peças que tratavam ao mesmo nível a rejeição do racismo e os poucos que se juntaram para o promover, o resultado foi o mesmo: ampla promoção do Chega e de André Ventura, ao seu discurso carregado de ódio dirigido a comunidades estrangeiras, que, numa triste ironia, assumiu na forma a coreografia importada de protagonistas estrangeiros que segue; pelo caminho, o bando de neonazis do ex-PNR alcançaram espaço em horário nobre com a sua provocação e o degradante favor prestado pelas estações de televisão; a grande massa humana que marcou o dia foi relegada a um parêntesis na narrativa mediática. Por exemplo, com directos intermináveis de Ventura a repetir até à exaustão o seu discurso, com as mesmas respostas às mesmas perguntas a sucederem-se por longos minutos sem que alguém numa régie tenha a lucidez ou a coragem de pôr fim a um momento televisivo que há muito perdeu relevância noticiosa e interesse público.
Uma grande parte da comunicação social (e especialmente as televisões, com o seu fascínio pelo abismo do imediatismo e a ilusória e perversa corrida pelas audiências) não só se demitiu da sua função social como se constituiu em instrumento para alimentar a narrativa sobre um falso confronto entre quem está “a favor” ou “contra” a polícia e entre conceitos de segurança e tranquilidade públicas, que devem ser garantidos, e de instrumentalização de forças de segurança, tão ao jeito da agenda reaccionária.
Aquelas horas de emissão podem ter sido propaganda ou um produto que corresponda a interesses políticos ou comerciais das estações, de quem as dirige ou de quem as detém, mas não foi jornalismo seguramente. Tendência preocupante que se vem agravando, como vimos no dia seguinte. Deslocar equipas para manter directos intermináveis a partir da Rua do Benformoso, como se viu no domingo, após a “rixa” ou os “desacatos” (para efeitos mediáticos, podem-se substituir estas palavras por quaisquer outras que constem do vocabulário reaccionário, securitário, xenófobo e racista), atribuindo-lhe uma centralidade nalguns canais quando quase nada se sabia do que tinha ocorrido – e, apesar do aparente escrutínio mediático intensivo, ainda pouco se sabe.
As exigências de contextualizar e tratar com rigor factos e acontecimentos que se exige a quem informa revelam-se assim sequestradas por critérios editoriais que procuram encaixá-los nas tais percepções que tantos se empenham em fabricar, pondo câmaras, microfones e profissionais da comunicação social ao serviço de agendas que tresandam a retrocesso.