Memória
A actriz brasileira Fernanda Torres recebeu há dias, em Hollywood, o Globo de Ouro pela sua interpretação no filme Ainda Estou Aqui, apresentado em Setembro no Festival de Veneza, onde foi aplaudido de pé por mais de 10 minutos. Visto já por mais de três milhões de pessoas no Brasil, tem estreia marcada para as salas portuguesas no próximo dia 16.
Realizada por Walter Salles (que já levou para os ecrãs a aventura motorizada do jovem Ernesto Guevara, antes de ser o Che, pela América do Sul), a longa-metragem acompanha a história de Eunice Paiva, interpretada por Torres, uma advogada que se torna activista política na sequência da prisão e consequente desaparecimento do seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, conhecido adversário da ditadura militar nascida do golpe de 1964 (organizado, como outros na América Latina e não só, pelos EUA). O filme adapta ao cinema o livro homónimo de Marcelo Rubens Paiva, um dos cinco filhos de Eunice e Rubens, escrito a partir das memórias da mãe.
Preso em Janeiro de 1971, Rubens Paiva foi torturado e assassinado pelos militares (acredita-se que o corpo, nunca encontrado, terá sido lançado ao mar dias depois da sua prisão). Só em 1996 é que seria emitida uma certidão de óbito. Até lá, Paiva foi um dos muitos milhares de “desaparecidos” da ditadura militar brasileira – prática comum, aliás, em vários dos países vizinhos nos tempos da sinistra Operação Condor, sustentada pelos EUA e responsável por dezenas de milhares de mortos e “desaparecidos” não só no Brasil, mas também na Argentina, na Bolívia, no Chile, no Paraguai e no Uruguai.
É esta realidade que Chico Buarque descreve, como só ele é capaz, na canção Acorda, Amor, de 1974: «Se eu demorar uns meses/ Convém, às vezes, você sofrer/ Mas depois de um ano eu não vindo/ Ponha a roupa de domingo/ E pode me esquecer.»
A estreia do filme no Brasil suscitou ódios e tentativas de boicote por parte de sectores da direita brasileira, saudosistas da ordem e da moral da ditadura militar – e, com elas, da exploração desenfreada, da negação de elementares direitos, do Estado capturado pelos poderosos, da normalização das injustiças, das desigualdades, do racismo. A consagração de Fernanda Torres e o retumbante sucesso de Ainda Estou Aqui têm um sabor a derrota para estes sectores, que expressões de exaltação patrioteira não conseguem esconder.
Também por cá se trava uma intensa batalha entre os que defendem os valores de Abril, e os querem projectar no presente e no futuro do País, e os que querem levar até ao fim o processo contra-revolucionário. A memória do fascismo e da resistência, da Revolução e da contra-revolução, é um campo dessa batalha. E nós aqui estamos para a travar. Ainda e sempre.