EUA – eleições e crise do sistema
A crise está a gerar divisões na classe dominante dos EUA
Quando estas linhas chegarem às mãos dos leitores já se terão realizado as eleições nos EUA. Quando as escrevemos não sabemos os resultados. Contudo, dado o objectivo deste artigo, isso não será o mais importante, uma vez que nos pretendemos concentrar no que está por detrás do degradante espectáculo político a que temos assistido.
Comecemos pelo sistema político e processo eleitoral. Contrariamente à ideia de uma eleição directa do Presidente dos EUA, aquilo que se passou na terça-feira foi a eleição de um colégio eleitoral de 538 eleitores (os chamados grandes eleitores), representantes dos 50 Estados (com distorções resultantes da fórmula de cálculo desse colégio) que depois elegerão o Presidente. A escolha dos “grandes eleitores” de cada Estado é feita na base da regra “o vencedor ganha tudo”, factor que distorce enormemente o voto popular.
É este sistema, que vem do tempo do esclavagismo, que faz com que o Presidente dos EUA possa ser eleito sem ser o candidato mais votado, como aconteceu com Trump em 2016. E é este modelo de distorção democrática que, aliado à institucionalizada promiscuidade entre o poder económico e os dois partidos, Democrata e Republicano, tem mantido um sistema de poder único, repartido entre esses dois partidos, com as suas próprias coutadas e clientelas, desenhado para afastar quaisquer outras forças políticas e alternativas da mínima hipótese de concorrência em condições de igualdade. É este o establishment norte-americano, o sistema de fusão do poder económico, político e militar que tem governado, com relativa “estabilidade” política a principal potência imperialista ao longo da sua História.
Contudo, essa “estabilidade” parece ameaçada e o degradante cenário destas eleições coloca em cima da mesa a possibilidade de alterações neste equilíbrio de poder. A questão impõe-se: porquê? A resposta está directamente ligada ao aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e ao declínio relativo da principal potência imperialista do Mundo. As contradições económicas e sociais dentro dos EUA são cada vez mais insuportáveis, o “sonho americano” é cada vez mais um pesadelo para uma parte significativa da sua população. Os EUA são hoje um dos países com maiores desigualdades sociais em todo o Mundo, onde sobrevivem cerca de 40 milhões de pobres, onde a insuficiência alimentar afecta dezenas de milhões de pessoas, onde cerca de 700 mil pessoas vivem na rua, onde um dos maiores factores de endividamento das famílias é o acesso a cuidados de saúde e onde a esperança média de vida é significativamente inferior à generalidade dos países industrializados. A sua economia sobrevive sobre uma bolha de endividamento (do Estado Federal, das empresas e dos cidadãos) – mantida à custa do resto do mundo – que mais cedo ou mais tarde será insustentável, sobretudo num quadro de persistente inflação, crescente desindustrialização e persistência de uma balança comercial estruturalmente negativa. A grande questão que emerge destas eleições é que os EUA estão mergulhados numa profunda crise estrutural cujas contradições chegaram aos pilares do sistema de domínio político e está a gerar divisões no seio da sua classe dominante. Trump não é um elemento estranho a tudo isto. Ele é a imagem caricaturada da crise estrutural nos EUA. Foi o sistema sem alternativa que lhe abriu as portas. O mesmo sistema que também Kamala Harris continua a personificar e a defender, veja-se a título de exemplo a convergência de ambos no apoio a Israel e ao genocídio na Palestina.