Dividir para reinar

Carina Castro (Membro da Comissão Política)

Promovem a divisão dos «de baixo», enquanto lá «em cima» há quem se fique a rir

 

O que é que o título «Apoios a idosos custam ao Estado mais 116,9 milhões do que a crianças» tem a ver com este outro título «Ministra do Trabalho mostra-se preocupada com quem ganha mais de subsídio do que se estivesse a trabalhar»? Ou com uma petição de uma associação de consumidores que reivindica compensações aos utentes pelas greves nos transportes? Ou com a profusão de publicações duvidosas em redes sociais sobre imigrantes?

Tudo isto são expressões da promoção da divisão dos «de baixo», enquanto lá «em cima» há quem se fique a rir de todos. Velhos contra novos, trabalhadores desempregados contra trabalhadores empregados, trabalhadores que andam de transportes públicos contra trabalhadores dos transportes em luta, trabalhadores nacionais contra trabalhadores migrantes. Quebrar a unidade de quem trabalha é truque velho, sempre reinventado, envolto em mentiras e manipulações. Temos dito que as ideias reaccionárias vêm por mais mãos e forças do que as da extrema-direita. Que fazem caminhos insidiosos, que assentam num quadro ideológico já predisposto para o individualismo, o egoísmo e a inveja, que promove sentimentos de inutilidade face à acção colectiva, que desviam toda e qualquer atenção de uma visão global das injustiças e desigualdades, ela mesmo potenciadora de unidade de classe e convocatória para a acção.

São parte de um projecto de retrocesso mais vasto, que se comprova com outros títulos dos últimos dias: «Creches privadas passam a poder beneficiar de financiamento público complementar quando pratiquem um horário de funcionamento para além das 11 horas diárias». Mais uma vez, subsidiar privados com dinheiros públicos – é assim na habitação, na saúde, nos benefícios fiscais, fazendo do capital os grandes subsídio-dependentes do Estado. Para a imensa maioria que vive do seu trabalho sobra o retrocesso dos salários baixos, da precariedade, falta de tempo para viver. Estamos em 2024, que visão de futuro é esta de financiar o alargamento de horário de creches para incentivar a desregulação dos horários dos pais? Creches abertas 24 horas por dia, toda a noite? Crianças que fazem horários de creche e de escola que não achamos admissível adultos fazerem num local de trabalho?

Parece que nada disto está ligado, mas está. E também tem tudo a ver com o debate que se travou no Parlamento há dias sobre o 25 de Novembro. Houve propostas várias: criação de um feriado, sessão solene anual, sessão solene este ano. Tiveram votações distintas umas das outras, voto contra do PS numas, a favor noutras, numa delas até o Livre se absteve. Enredados na semântica do «evocar é distinto de comemorar», sobrou o que os uniu: uma certa forma de ver o processo revolucionário, os golpes e conspirações contra ele, a sua relação com a adesão de Portugal à UE. E nisso ficaram de mãos dadas com a direita, toda ela.

Qual é o fio condutor de tudo isto? Estes muitos caminhos pelos quais avançam as ideias e projectos reaccionários materializam-se na falta de resposta aos problemas das pessoas – salários, saúde, habitação, direitos; e têm avenidas abertas também pela deslocação para a direita de forças que antes convergiam em bases comuns do que é a democracia, a emancipação, em todas as suas dimensões, dando corpo a uma forma de totalitarismo ideológico à direita. Tudo isto é expressão da mais viva e actual luta de classes, porque pretende o domínio absoluto do neoliberalismo, para aprofundar a exploração e a acumulação de lucros.

Estas linhas não são sobre impossibilidades ou desesperanças, mas sobre as necessárias clarificações para que se abram todas as possibilidades para avançar. Mudar embrulhos para branquear práticas políticas concretas, seria potenciar retrocessos. Unidade para romper com o que nos trouxe aqui, para cumprir Abril, é construir com os debaixo, o futuro a que temos direito. Está nas nossas mãos.

 



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