Ameaça e espantalho
É compreensível a preocupação pelo resultado alcançado pelo Chega nas eleições legislativas. Tão significativo reforço eleitoral de um partido com um projecto político reaccionário e fascizante, uma forte dimensão xenófoba e racista e um marcado discurso de ódio é, sem dúvida, um desenvolvimento particularmente negativo na situação política nacional, a merecer toda a atenção. E todo o combate.
Nos últimos dias têm-se multiplicado as análises que procuram explicar este resultado e, com ele, a própria evolução da extrema-direita em Portugal. Do muito que se disse e escreveu, e do que previsivelmente se dirá e escreverá ainda, há reflexões interessantes e conclusões pertinentes, mas na maioria dos casos passa-se ao lado de questões essenciais: O que se esconde por detrás do Chega? Que grupos o colocaram, e às suas concepções, no centro das atenções mediáticas? Quem o financia? Que interesses serve? A resposta a estas interrogações (um caso típico de follow the money) fará luz sobre a natureza desse partido e dará pistas acerca da melhor forma de o travar.
Mas parece também evidente que o Chega, para além do que representa em si mesmo, serve outros propósitos, nem sempre claros. Para além do selo «de esquerda» que ajudou a conferir ao PS, e que terá contribuído para a maioria absoluta de 2022, concorre também para branquear o projecto que PSD e CDS têm para o País, que é mais parecido com o seu (e o da IL) do que pode parecer – ou não fossem essencialmente os mesmos os «donos» de uns e de outros. A propósito, a reivindicação de mudança expressa pelos patrões da Sonae e da Jerónimo Martins, no momento em que apresentavam os seus lucros crescentes, não deixa de ser significativa...
Mas que projecto é esse, que em muito do que é decisivo une os partidos da AD com os seus sucedâneos mais reaccionários? É o que foi implementado nos anos negros da troika, e que só não foi mais longe porque a luta o interrompeu: o corte de salários, pensões, apoios sociais e feriados; uma ainda maior desregulação das relações de trabalho; o encerramento de serviços públicos; a mutilação de direitos democráticos e avanços civilizacionais; a privatização de empresas estratégicas; o aumento drástico do desemprego e da pobreza; a emigração em massa; o agravamento da dívida pública, com a transformação de Portugal em refém dos então tão famosos mercados.
Para o combate que aí vem não ajuda definir uma fronteira estanque, como fez Rui Tavares, do Livre, entre o Chega e o que chama de direita democrática, com quem garante que será possível dialogar sobre muitas matérias para «melhorar a nossa democracia».
A luta a travar tem de ser contra cada ataque, cada retrocesso, venham eles de onde vierem. É que o Chega é ameaça, mas também é espantalho.