«A nossa música ainda corta as ideias de quem escuta»
Em Outubro de 2021, os Ratos de Porão comemoravam 40 anos de carreira enquanto gravavam um novo álbum, o primeiro desde 2014. Nesse período o Brasil passou por um enorme processo de degradação política e social: esses últimos anos tinham trazido de volta a fome, a inflação, as ameaças de rompimento com a democracia e, como se não bastasse, uma pandemia. O resultado de tudo isso foi Necropolítica, um álbum conceptual sobre a era bolsonarista e a ascensão da extrema-direita no país.
«Pelas letras atemporais, nossa missão social de alerta é sempre válida»
O vosso primeiro álbum, lançado há quase 40 anos (é de 1984, teve várias reedições e a Rolling Stone Brasil meteu-o, em 2016, no primeiro lugar da lista dos melhores discos punk rock do Brasil) intitula-se Crucificados pelo Sistema, que é também o nome de uma canção que diz isto: «Nascer p’ra liberdade e crescer para morrer / Crucificados pelo sistema / Morrer sem esquecer o povo que ficou / Crucificados pelo sistema.»
40 anos depois, os crucificados pelo sistema ainda são os mesmos? O Ratos de Porão ainda toca para eles?
Sim. Além de tocar p’ra mesma massa, que se renova, de crucificados, fazemos parte dela ... aqui no Brasil ainda somos crucificados pelo capitalismo, fascismo, racismo e religião cristã. O povo ignorante, pobre ou rico, é manipulado pelas redes sociais, tornando essa crucificação social muito mais eficiente e dolorosa, sem prazo de validade.
Por outro lado, o penúltimo álbum de originais (lançado em 2014), chamado Século Sinistro, recebeu o título de uma canção que parece ter perdido a esperança no futuro. Nesses 30 anos, se olharmos para o primeiro álbum e o compararmos com este, podemos dizer que o Ratos de Porão está mais pessimista do que antes? Ainda é útil para a sociedade fazer punk antifascista, como vocês fazem, ou sentem-se desanimados?
Sim, muito mais pessimistas e experientes. Nesse espaço de 30 anos nada mudou socialmente no Brasil, certas coisas ficaram muito pior. Temos uns 10 ou 12 discos entre um lançamento e outro. É óbvio que ficámos muito mais rápidos e precisos na nossa sonoridade. Como uma faca amolada, nossa música ainda corta as ideias de quem escuta e sabe que está acontecendo. Pelas letras atemporais, nossa missão social de alerta é sempre válida e continua surtindo efeito em muitos jovens que falam português, ou não. Ainda vale muito a pena fazer música extrema antifa.
É justo dizer que a vossa música é uma música feita pelas classes proletárias destinada a ser ouvida pelas classes proletárias, ou esse tipo de classificação não faz sentido?
Eu e o guitarrista fundador, Jao, somos metalúrgicos de profissão e sempre fizemos música de proletários para o proletariado. Certo que há muitos anos que não exercemos a profissão, mas fazemos música para o trabalhador e explorados em geral. Muitas letras não abordam esse tema, falam sobre morte, drogas, álcool, psicopatia e maldade. Mas o fã capta a mensagem, mesmo sendo adepto de outro estilo de música pesada.
Também gravaram o ano passado um disco com versões em português de canções de uma banda finlandesa chamada TERVEET KÄDET. O disco chama-se Isentön Päunokű. Como é que tiveram esta ideia e o que pretenderam alcançar com ela?
Somos fãs dessa banda desde 1982. O ep original aaretön joulü é o melhor EP de punk finlandês de todos os tempos... fizemos uma paródia dos temas... uma brincadeira que fazemos sempre com certas palavras que no idioma finlandês lembra o nosso português, dando o efeito divertido, p’ra quem conhece, tipo «ei enaa koska sota» que virou «ele está com a rosca solta» e letras, lógico, criticando o bolsonarismo e seus apoiadores.
Foram das bandas brasileiras que mais protestou contra o governo Bolsonaro e das que mais criticou não só os artistas que o apoiaram, mas sobretudo os que se mantiveram numa posição neutra. Aparentemente o nome Isentön Päunokű desse último disco tem a ver com isso. Acham a neutralidade perigosa? A neutralidade serve os interesses da extrema-direita?
Quem está em cima do muro sempre pula para o lado direito. Tenho muitos amigos, principalmente no metal, que abraçaram a neutralidade. O isento é um pau no cu, realmente. Sem se indignar, ele faz parte da massa de manobra, sendo cúmplice involuntário de crimes que ele finge ignorar.
Na Festa do Avante! vão tocar só as canções mais recentes ou tocarão alguns temas mais antigos?
Temos muitos discos, como consequência centenas de músicas, a maioria não sabemos tocar, mas tem aquelas 30 ou 40 clássicas que não precisamos ensaiar para tocá-las... então o show são três músicas do último disco Necropolítica e mais um apanhado de todos os discos... muita porrada vos espera.