A avidez dos lobisomens
Em O Capital, escrito no longínquo século XIX, Marx condenava assim o apetite do capitalismo pelo trabalho infantil: «no seu impulso desmedidamente cego, na sua avidez de lobisomem por sobretrabalho, o capital derruba as barreiras máximas do dia de trabalho, não só as morais mas também as puramente físicas. Ele usurpa o tempo para crescimento, desenvolvimento e saudável conservação do corpo. Rouba o tempo requerido para o consumo de ar livre e luz solar.» Dois séculos mais tarde, o trabalho infantil regressa ao país capitalista mais desenvolvido do mundo como uma doença crónica, e de nascença.
Segundo o Departamento do Trabalho da Casa Branca, em 2022 o número de crianças a trabalhar ilegalmente aumentou 37 por cento. Se olharmos para a última década, esse número ultrapassa os 140 por cento. No final de Fevereiro, o New York Times dava à estampa uma peça intitulada «Sozinhas e Exploradas, Crianças Migrantes em Trabalhos Brutais nos EUA», que denunciava a escala aterradora do crime contra as crianças: centenas de milhares delas, muitas com menos de 12 anos, sem família, a trabalhar como adultos até 14 horas por dia, impedidas de brincar, de aprender, de serem crianças, para engordarem as estatísticas do trabalho infantil e os lucros dos lobisomens que detêm os meios de produção.
De costa a costa, uma maré legislativa percorre os congressos estaduais dos EUA, eliminando as leis que protegiam as crianças do trabalho infantil. No Wisconsin substituiu-se «trabalho infantil» por «trabalho feito por menores»; em Nova Hampshire, permitiu-se que crianças de 14 anos sirvam bebidas alcoólicas e trabalhem até 35 horas por semana; no Senado do Iowa, no passado dia 1, foi aprovado na generalidade o projecto de lei 167 que permite que crianças a partir dos 14 anos possam desempenhar trabalhos perigosos, desde que como «aprendizes». Entre as indústrias abertas à aprendizagem das crianças do Iowa, encontram-se «matadouros, processamento de carne, minas, serras circulares, demolições» etc. Como se não bastasse, o SF167 «isenta os negócios de quaisquer responsabilidades judiciais caso o aprendiz adoeça, sofra um acidente ou morra devido à negligência do empregador». Defendendo o projecto de lei, Jason Schultz, do Partido Republicano, garantiu que a nova legislação «vai criar uma geração de líderes habilidosos».
Da indústria automóvel à indústria alimentar, passando pela construção e pela hotelaria, o trabalho infantil deixou de ser excepção nos EUA. Já não é uma memória nem uma visão do «terceiro mundo. Já não se esconde. É omnipresente e torna-se legal. Na sua crónica semanal no Moville Record, Schulz sintetizava assim a causa do trabalho infantil: «se o futuro pertence às crianças não lhes podemos negar o direito de construí-lo no presente. Não nos podemos esquecer que este mundo é muito mais competitivo do que há 50 anos». Pois é, mas não mais do que há 200, diríamos nós, que sabemos que outro mundo tem mesmo de ser possível.