SNS e o Bacalhau à Brás

Carina Castro (Membro da Comissão Política)

Recentemente fomos brindados com declarações, no mínimo bizarras, sobre as dificuldades que o Serviço Nacional de Saúde enfrenta. Desde Graça Freitas, «a pior coisa que nos pode acontecer é adoecer ou ter acidentes em Agosto», a Marcelo Rebelo de Sousa, «cada qual fará o esforço para não estar doente». Graça Freitas chegou mesmo a dar sugestões preciosas: «eu transporto meio litro de água. Posso passar nove horas nas urgências, tenho de beber água.»

Só o SNS garante o acesso de todos, em todo o País, a cuidados de saúde

Tudo isto quando se sucedem casos de encerramento de Urgências por falta de profissionais, o que poderia levar a pensar tratar-se de uma inevitabilidade de calendário ou, como afirmou António Costa, da «acumulação de feriados». Tudo menos responsabilidades políticas no estado de degradação a que se está a conduzir o SNS.

Graça Freitas nem o Bacalhau à Brás poupou, sendo apontado como um «grande culpado» que leva muitas pessoas às Urgências. Poderia pensar-se que a situação resulta de um número crescente de utentes sem médico de família que, pela falta de resposta, são empurrados para as Urgências, mas pelos vistos o mal é dos ovos e do calor.

Tudo isto seria cómico se a situação não fosse trágica.

É trágica pelas consequências que tem para os utentes, porque resulta de uma estratégia deliberada de ataque ao SNS, para beneficiar os privados. Não é por acaso que os hospitais privados fizeram quase 30 por cento dos partos em Lisboa e Vale do Tejo em 2021. Como não é por acaso que o Governo do PS rejeita reiteradamente as propostas do PCP para valorizar carreiras, garantir e incentivar a exclusividade, incentivar os profissionais em zonas carenciadas – medidas de fundo para fixar para profissionais no SNS e estancar a sangria para o privado. Opta por contratar à peça, em outsourcing, prejudicando utentes, profissionais, instituições, engordando os privados que fazem da doença negócio. É que enquanto diz discordar, o PS faz o que a direita quer.

Foi o próprio Eurico Brilhante Dias a lembrar o PSD que foi o PS quem lançou quatro parcerias público-privadas na Saúde, afirmando não haver «nenhum dogma ideológico», como quem diz: na política de direita, estamos bem uns para os outros.

Subfinanciamento crónico; transferência crescente de recursos para os grupos privados; degradação das condições de trabalho provocando a saída e impedindo a entrada de profissionais em número suficiente; limitação da autonomia, coordenação e organização dos serviços de saúde – são tudo marcas da convergência na acção governativa de PS, PSD e CDS.

Assim se explica o aumento de utentes sem médico de família; as listas de espera em várias áreas; a redução de camas nos hospitais públicos, enquanto aumentam nos hospitais privados; os aumentos de gastos da população com a saúde; a subida da transferência de verbas públicas para os grupos privados.

Cada vez que retiramos dinheiro ao SNS para dar ao privado, reduzimos a possibilidade de melhorar os serviços públicos. E só o SNS garante o acesso de todos, em todo o País, a cuidados de saúde, incluindo todas as valências e especialidades, independentemente da sua condição económica ou social.

Posicionamento claro

Talvez agora fique mais claro para muitos o posicionamento do PCP quando votou contra a proposta de Orçamento do Estado para 2022. Colocámos no centro do debate a urgência do aumento geral dos salários, e desde logo do aumento do salário mínimo nacional; as alterações à legislação laboral, com a valorização da contratação colectiva, decisiva para o aumento dos salários no sector privado; exigimos medidas imediatas para salvar o SNS que, a não serem tomadas, poderiam levar a uma situação irreversível.

A vida aí está a dar razão ao PCP: o aumento do custo de vida demonstra que a recusa em aumentar salários significa, de facto, um corte de rendimentos; já sobre o SNS, está tudo dito. É hoje ainda mais claro que o objectivo do PS foi ver-se livre do condicionamento do PCP para, fazer a política de direita com que sempre esteve comprometido. É que «não há nenhum dogma ideológico» em relação ao benefício dos grandes grupos económicos, é mesmo opção política. E se não houver salário até ao fim do mês, e a saúde for só para quem pode pagar, comam brioches que sempre é menos arriscado que o Bacalhau à Brás.




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