A crise no Cazaquistão

Luís Carapinha

O Cazaquistão é um país riquíssimo no coração da Ásia

A explosão da situação no Cazaquistão marca a entrada de 2022, antecipando-se às reuniões desta semana entre a Rússia e os EUA, a NATO e no quadro da OSCE, em torno das «garantias de segurança» exigidas publicamente por Moscovo.

Os acontecimentos no Cazaquistão foram qualificados pelo presidente Tokaiev como a crise «mais grave» em 30 anos, desde o final da URSS e a proclamação da independência do país centro-asiático, cujo território fez parte até 1917 do Império Russo.

Persistem zonas de sombra sobre o que teve lugar no país nestes dias, mas não há dúvidas sobre as suas raízes e enquadramento social. Os motivos dos protestos que se alargaram a grande parte do vasto país, a antiga segunda maior república soviética, são mais fundos do que o aumento para o dobro dos preços do gás combustível (entretanto suspenso). E do que o despedimento, no final de 2021, de perto de 40 mil trabalhadores da maior empresa petrolífera (em que 75% do capital é detido por duas multinacionais dos EUA). Transcendem a memória viva de Janaozen, na região ocidental do Cazaquistão onde deflagrou a recente vaga de contestação, palco em 2011 de um massacre policial contra o movimento grevista de trabalhadores do sector petrolífero.

O Cazaquistão é um país riquíssimo, mas estes 30 anos pós-soviéticos de transição capitalista e conformação do poder das oligarquias são sinónimo do agravamento exponencial das desigualdades e contradições sociais, da irrupção de grandes manchas de pobreza suburbana e rural. Do recrudescimento retrógrado do tribalismo clânico, tendo como expoente a promoção do culto da personalidade do anterior presidente, Nazarbáiev – levando inclusive à mudança de nome da nova capital, Astana, para Nur-Sultan –, em torno do qual se ergue hoje um dos principais conglomerados oligárquicos. Da instrumentalização pelas elites, e influentes interesses externos, da carta nacionalista (passando pela instilação de sentimentos anti-russos).

É neste pano de fundo, de que fazem também parte a repressão do movimento sindical, o enfraquecimento e divisão do movimento comunista e, em 2015, a revogação judicial do registo do PCC, que tem lugar o alastramento e radicalização da actual vaga de protesto social e o seu desvio e «sequestro» por grupos violentos de todo alheios aos interesses populares, nomeadamente, na maior cidade do país, Alma-Ata.

Manipulados por interesses ocultos, não apenas no âmbito de pugnas no seio da classe dirigente, exacerbadas pela operação em curso desde 2019 de «transferência» do poder de Nazarbáiev, mas também por aqueles que aguardam a oportunidade para cumprir a agenda intervencionista do imperialismo, à semelhança da Maidan ucraniana ou da operação fracassada na Bielorrússia, expondo o quadro concreto não linear da luta de classes no plano nacional e internacional.

Foi a «guerra terrorista», invocada pelo presidente cazaque para a deslocação inédita de forças da Organização do Tratado de Defesa Colectiva, OTDC, exagerada? O tempo encarregar-se-á de dissipar as nuvens e aclarar todas as circunstâncias. Não restando dúvidas de que a desestabilização do Cazaquistão no coração da Ásia Central e triunfo da «revolução colorida» corresponderia às mil maravilhas aos objectivos da campanha profunda encabeçada pelos EUA contra a Rússia, a China, a Organização de Cooperação de Xangai...




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