Pela calada

Jorge Cadima

A retirada não significa o fim da ingerência imperialista no Afeganistão

A agência Associated Press relata (6.7.21) o abandono pelas tropas dos EUA da «maior base aérea» do Afeganistão e «epicentro da guerra da América para desalojar os Talibãs e dar caça à Al-Qaida»: «Os EUA abandonaram a Base Aérea de Bagram após quase 20 anos, desligando a electricidade e saindo pela calada da noite sem notificar o novo comandante afegão da base, que apenas se apercebeu da saída dos americanos mais de duas horas após a sua partida». Para trás ficaram «3,5 milhões de itens», incluindo «milhares de veículos civis, muitos sem as chaves de ignição». A Base Aérea de Bagram «chegou a albergar 100 000 soldados dos EUA» e era «do tamanho duma pequena cidade, exclusivamente usada pelos EUA e NATO», incluindo «um hospital com 50 camas» e «uma prisão com cerca de 5000 presos». A notícia acrescenta que «a maioria dos soldados [de outros países] NATO já tinha partido discretamente».

Décadas de ingerência dos EUA, incluindo 20 anos de ocupação militar, destruíram o Afeganistão. O Instituto Watson da Brown University estima em quase 250 mil o número de mortos causados pela guerra desde a invasão de 2001, com um custo de 2,26 biliões de dólares para os EUA (watson.brown.edu/costsofwar). A UNHCR estima 5,5 milhões de refugiados ou pessoas deslocadas dentro do país. A ingerência dos EUA foi indissociável da promoção do terrorismo fundamentalista (recorde-se os mujahedines recebidos por Reagan na Casa Branca nos anos 80 e o seu financiamento multi-milionário pelos EUA). Mas também do tráfico de drogas, com efeitos dramáticos para os povos, mas magníficos para o sistema financeiro do capitalismo. A ingerência dos EUA nos anos 80 coincide com o início da produção em larga escala de ópio no Afeganistão (Figura 5, p.38, Relatório Mundial sobre Droga 2010, da UNODC, agência ONU para as drogas), país que «em 2020 é responsável por 85% da produção total mundial de ópio» (www.unodc.org, World Drug Report 2020). Houve um ano neste período em que o cultivo da papoila foi praticamente erradicado (pelos Talibãs): o ano 2001. Curiosamente, terminou com a invasão pelos EUA e subsequentes níveis recorde na produção de opiáceos. Explosão prevista antes da invasão por um ex-agente anti-drogas da polícia de Los Angeles, virado dissidente ao constatar o profundo envolvimento dos serviços secretos dos EUA no tráfico de drogas mundial (fromthewilderness.net, The Lies about Taliban Heroin, 10.10.01). Envolvimento documentado em livros de autores norte-americanos como o professor universitário Alfred W. McCoy (The politics of Heroin: CIA Complicity in the Global Drug Trade); o ex-diplomata canadiano Peter Dale Scott (Drugs, Oil and War); Gary Webb (Dark Alliance) ou Douglas Valentine (The CIA as Organized Crime).

A saída formal das tropas terrestres EUA simboliza o fracasso da estratégia de envolvimento militar directo, com custos económicos e políticos incomportáveis. Mas seria ilusório pensar que represente o fim da subversão imperialista no Afeganistão e na região. Tentarão reagrupar forças para enfrentar os novos «inimigos principais» dos EUA/NATO. São de esperar operações aéreas, de tropas especiais e de bandos ao estilo ISIS, na esperança que o caos e a desintegração do país atinjam os vizinhos: Irão, China, Rússia. Está nas mãos dos povos da região pôr definitivamente fim à ingerência imperialista.




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