Soa a dor

Anabela Fino

Quanta dor car­rega um som? A per­gunta pode pa­recer es­tranha, mas não só de­veria estar na ordem do dia como a res­posta não é li­near.

Tudo de­pende da in­ten­si­dade do emissor e da dis­tância a que se en­contra do re­ceptor, res­pondem os pe­ritos, que de há algum tempo a esta parte vêm ex­pe­ri­men­tando o ca­nhão de som LRAD, a arma acús­tica da moda no com­bate aos re­fu­gi­ados e re­que­rentes de asilo, se­gundo de­nun­ciou num vídeo re­cente a rede de no­tí­cias Deutsche Welle.

De­sen­vol­vido pela Long Range Acoustic De­vice Cor­po­ra­tion e apre­sen­tado como um «dis­po­si­tivo de co­mu­ni­cação de som di­rec­ci­o­nado», o LRDA – um ruído agudo, tão alto como o pro­vo­cado pelo motor de um avião a jacto – tem vindo a ser tes­tado na Grécia, Hun­gria, Le­tónia e nou­tros países de Leste e faz parte de um con­junto de novas téc­nicas, que in­cluem igual­mente câ­maras, drones, in­te­li­gência ar­ti­fi­cial e iden­ti­fi­ca­dores bi­o­mé­tricos, que estão a ser in­cre­men­tadas para deter os mi­grantes, fruto de um in­ves­ti­mento de três mil mi­lhões de euros que a União Eu­ro­peia dis­po­ni­bi­lizou para pes­quisas da cha­mada «tec­no­logia de se­gu­rança».

Sa­bendo-se que o des­con­forto no ou­vido hu­mano co­meça quando o som atinge 120 de­ci­béis (dB); que a perda per­ma­nente de au­dição co­meça em 130dB; que aos 140dB, para além da perda de au­dição pode também ocorrer perda de equi­lí­brio e pa­ra­lisia, ou seja, in­ca­pa­ci­dade mo­vi­mentos para sair da tra­jec­tória do som, como clas­si­ficar esta «tec­no­logia de se­gu­rança» da UE?

Sa­bendo-se que a mai­oria dos que pro­curam re­fúgio na Eu­ropa pro­cedem de países como a Líbia, Iraque, Afe­ga­nistão ou Síria, des­truídos por guerras con­du­zidas pelos EUA e apoi­adas pela UE, que dizer do re­curso a bar­reiras er­guidas a co­berto do con­fi­na­mento im­posto pela pan­de­miade Covid-19, como é o caso do muro de aço de 200 km entre a Grécia e a Tur­quia, ao longo do Ma­ritsa, em tudo idên­tico ao man­dado cons­truir por Trump na fron­teira dos Es­tados Unidos com o Mé­xico?

Que raio de UE é esta que à de­núncia feita em Maio pelo jornal bri­tâ­nico The Guar­dian

de prá­ticas bru­tais, du­rante a pan­demia, para re­primir os mi­lhares de re­que­rentes de asilo nas fron­teiras co­muns, tem como única res­posta a ne­ces­si­dade de «equi­pa­mentos e fer­ra­mentas mo­dernas», en­quanto a co­mis­sária para os Di­reitos Hu­manos do Con­selho da Eu­ropa es­creve cartas a mos­trar-se pre­o­cu­pada com as «nu­me­rosas acu­sa­ções cre­dí­veis» de de­vo­lu­ções su­má­rias de mi­grantes nos úl­timos anos?

Que de­mo­cra­cias são estas que en­quanto os povos se con­finam pla­neiam, como as au­to­ri­dades de Lon­dres, cons­truir um muro flu­tu­ante no Canal da Mancha, pro­vocar ondas ar­ti­fi­ciais ou criar um centro de de­tenção na Ilha de As­censão?

Pela ca­lada da pan­demia, quem dita dores sobe o tom da re­pressão. Como é que não ou­vimos?




Mais artigos de: Opinião

Opções e conjunturas

Há poucos dias, António Costa (AC), afirmou no Funchal que «esta crise [do turismo] demonstrou bem a fragilidade de alguns dos sectores económicos mais robustos, mais promissores e que foram áreas de especialização natural em muitas regiões». E acrescentou que, para o futuro, não podemos depender tanto e só de um sector...

Iliteracias

Por superficialidade, iliteracia ou ingenuidade, tomando por certo a inexistência de outras tortuosas intenções, são dados à luz títulos de imprensa que qualquer leitor desprevenido toma por certos. É disso exemplo o que anunciava, a propósito de uma entrevista do secretário-geral do PS, «regionalização em 2024». Os mais...

Nem carne nem peixe…

Não passou despercebida a enorme atenção que despertou o mais recente congresso do PAN aos principais órgãos de comunicação social. Apesar do reduzido número de «congressistas», da pouca representação eleitoral e até social desta força política, apesar da marginalidade e vacuidade dos temas que marcaram a discussão dessa...

Coelima: um exemplo entre muitos outros

Como o PCP tem afir­mado, é ne­ces­sária uma po­lí­tica com vista ao de­sen­vol­vi­mento do País, que ga­ranta o em­prego, sa­lá­rios dignos, o cres­ci­mento eco­nó­mico e a de­fesa do apa­relho pro­du­tivo.

Israel: «novo» governo? velha política

A situação política em Israel vive momentos de instabilidade. Tal facto não é separável do levantamento do povo palestiniano e da sua notável resistência aos recentes crimes de Israel. É que por mais que se esconda, existe um elefante na sala: não obstante a dura realidade das centenas de mortos e milhares de feridos...