É o capitalismo!

João Frazão (Membro da Comissão Política)

Já aqui, noutro espaço, trouxemos a denúncia de que, nestes complexos e, para a esmagadora maioria, sombrios tempos, a venda de automóveis apenas correu bem para as marcas de luxo. Voltamos ao tema, porque há dois elementos que confirmam que isso não foi fruto do acaso, antes é consequência das características intrínsecas e da natureza do capitalismo.

Perante a possibilidade de lucro, o capitalismo não se detém perante nada.

A humanidade foi confrontada, subitamente, com uma pandemia de uma dimensão única.

Para lá dos problemas sanitários que ela colocou, com centenas de milhões de infectados e milhões de mortos, em todo o mundo, com impactos brutais nos sistemas de saúde e, também por isso, com capacidades de resposta muito diferenciada face às opções que foram tomadas em cada um dos países nesta área, as populações viram-se a braços com impactos económicos e sociais de dimensão avassaladora.

Desemprego, cortes nos salários e nos direitos, desregulação de horários, de rotinas e da vida, encerramento de milhares de pequenas empresas, limitações nas respostas dos serviços públicos e das funções sociais do Estado, ficam marcados a ferro quente nas sociedades.

Durante meses, e já lá vai quase um ano, disseram-nos que ia ficar tudo bem, uma vez que estávamos todos no mesmo barco.

Agora os números e os factos dizem-nos coisas diferentes.

A lista de bilionários da Bloomberg diz-nos que as dez maiores fortunas do mundo acumularam mais 315,5 mil milhões de dólares ao longo de 2020. Isto, a somar aos 828 mil milhões que já detinham. No seu conjunto, as 500 pessoas mais ricas aumentaram o seu pecúlio em mais de 31%, em 2020.

Do outro lado, diz-nos o Banco Mundial (já não há como esconder) que, também em 2020, a pobreza extrema no mundo aumentou, pela primeira vez em vinte anos.

A ONU confirma, lembrando, em Dezembro passado que, no final de 2021, 736 milhões de pessoas poderão estar em situação de pobreza extrema, a viver com menos de 1,60 euros por dia. 235 milhões precisarão, segundo a organização, de ajuda humanitária para sobreviver. No mesmo relatório, revela-se ainda que a pandemia de covid-19 terá provocado uma perda equivalente a 495 milhões de postos de empregos a tempo inteiro, só no segundo trimestre de 2020.

Basta fazer contas simples. Os 315 mil milhões de euros, amealhados por apenas dez pessoas, à custa da exploração da força de trabalho de outros, serviriam para quase duplicar o valor com que 736 milhões de pessoas tentam sobreviver, durante um ano.

O que a vacina mostra

Mas os factos dizem-nos ainda que, perante a crise sanitária sem precedentes, e tendo sido já descobertas, e aprovadas pelas autoridades respectivas, diversas vacinas, num notável feito da ciência mundial, elas não estão a ser disponibilizadas às populações, e particularmente às mais desfavorecidas.

Farmacêuticas, propriedade de grandes grupos económicos, associados ao capital financeiro, estão a gerir a produção de vacinas de modo a fornecer primeiro os mercados que pagam melhor e, apesar da investigação ter sido assegurada mediante investimento maioritariamente, senão na totalidade, público, retêm as patentes e impedem a produção por outros países para assegurar os seus lucros fabulosos.

Tal estratégia inclui ainda a subordinação do poder político, que atrasa decisões e ignora avanços de outras empresas, para favorecer este ou aquele poder económico, ao serviço do qual se encontram.

Há quem possa pensar que se trata da natural gula dos indivíduos. Há quem diga que o que é preciso é bom senso ou caridade e humanismo por parte dos decisores.

Esquecem-se, ou querem que não se saiba, que é da própria natureza do capitalismo que se trata. Perante a possibilidade de lucro, de acumulação da riqueza, não se detém perante nada. E condenará à fome, à miséria, à morte, se preciso for, um ou um milhão de seres humanos, com esse objectivo. É por isso que é indispensável, é urgente, superá-lo.




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