Palavras

Anabela Fino

Aos votos para o novo ano é necessário acrescentar, se é que ainda ninguém o fez, o pedido urgente de um novo léxico. As palavras que usamos já não servem para exprimir a realidade, estão gastas. Não pelo uso, não, longe disso, mas pelo abuso a que são sujeitas todos os dias, em todas as línguas, em todos os azimutes.

Diz-se amor e ódio com a displicência com que se fala do dia ou da noite. Declara-se amor à t shirt da moda, ao brunch vegan, à namorada ou ao jardim da Estrela com a mesma ligeireza com que se afirma odiar a couve de Bruxelas, os bombons de Joana Vasconcelos ou as peúgas de homem brancas.

Fala-se de dor e tortura para contar uma ida ao dentista onde as intervenções são feitas sob anestesia. Morre-se de fome quando se falha ou atrasa uma refeição. Morre-se de medo a ver um filme de terror e a comer pipocas. Equipara-se uns dias de bloqueio de estrada e a perda do Natal com a família à vida nos campos de refugiados. Classifica-se de humanitário o extermínio de milhões de seres humanos em fornos crematórios.

Nos discursos oficiais, fala-se com pompa e circunstância da justiça e da igualdade, ainda que a força bruta de realidade grite o contrário. «A justiça e a igualdade de acesso sempre foram essenciais e ver a vacinação começar em todos os estados-membros, sejam pequenos ou grandes, é um momento importante de solidariedade da UE», garantiu há dias a comissária europeia da Saúde, Stella Kyriakides, numa nota à comunicação social, asseverando que a «UE atravessou esta pandemia em unidade e agora também estamos a iniciar o processo para pôr um fim duradouro à pandemia, juntos e unidos». Seria cómico se não fosse tão trágico.

Depois de se ter assistido ao salve-se quem puder no início da pandemia, com cada Estado-Membro a olhar para o umbigo e a fechar-se, literalmente, em casa, a que se seguiu o indecoroso espectáculo do regateio das ajudas para sobreviver à crise, a que se junta agora a distribuição, segundo critérios não divulgados, de vacinas adquiridas num (mais um) negócio sigiloso, depois de tudo isto, dizia, ocorre perguntar o que significa justiça, igualdade, solidariedade, unidade...

Parafraseando o poema de Chico Buarque – ... de muito gorda a porca já não anda / de muito usada a faca já não corta / como é difícil, pai, abrir a porta / essa palavra presa na garganta... –, o vocabulário a uso de tão torcido já não serve, de tão deturpado já não presta, de tão conspurcado já não assiste ao que verdadeiramente importa.

Neste início de ano ainda por estragar, e porque é nosso dever falar, fazemos nossas as palavras do poeta francês Léon-Paul Fargue: «É preciso que cada palavra que cai seja o fruto bem maduro da suculência interior». Bom ano.

 



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