A suspensão

Gustavo Carneiro

Há uns anos, numa conferência promovida pela Câmara de Comércio Luso-Americana, a então presidente do PSD, Manuela Ferreira Leite, sugeriu a suspensão da democracia por um dado período, para que fosse possível pôr tudona ordem. A coisa provocou alguma celeuma e suscitou, na altura, acaloradas reacções – umas sinceras, outras para eleitor ouvir. Finalmente arrumada como se de um mero lapso ou insignificante pormenor se tratasse, a polémica rapidamente arrefeceu, até cair no esquecimento.

Se recordamos tão longínquo episódio é porque esta pulsão antidemocrática não é exclusiva da antiga ministra de Cavaco Silva, que neste aspecto se destaca de outros apenas pelo facto de, naquela ocasião, ter dito mais do que porventura gostaria de tornar público. Ao longo dos anos, não houve uma crise, um sobressalto, sem que alguém tivesse vindo a público exigir mão de ferro, estados de excepção, restrições de direitos ou intervenções de entidades externas. Por mais limitado que tenha sido o alcance destas concepções, elas sempre aí estiveram. E fizeram o seu caminho.

Como sempre sucede em momentos críticos, também a epidemia de COVID-19 foi vista por alguns como uma oportunidade: de despedir, de concentrar riqueza, de abocanhar fundos e recursos públicos, de semear e cavalgar o medo – esse eficaz instrumento de controlo. Nos primeiros meses do surto epidémico, ao mesmo tempo que o desemprego alastrava (atinge hoje os 700 mil trabalhadores), mais de metade das grandes empresas beneficiava do lay-off simplificado, não deixando por isso, muitas delas, de acumular elevados lucros e distribuir generosos dividendos.

Mas para que o festim decorresse sem perturbações havia que ir mais longe: o estado de emergência que vigorou nos meses de Março e Abril limitou os direitos de greve e resistência, mas não há registo de nenhuma medida sanitária significativa assumida no seu âmbito. Apesar disso, Abril foi celebrado no Parlamento, a Grândola, Vila Morena cantada em milhares de janelas, Maio mostrou-se firme em dezenas de ruas e de praças. O banquete, afinal, teve um sabor agridoce.

Não admira que PSD, CDS, Chega, e, com eles, um autêntico exército de comentadores e analistas, dirijam toda a sua raiva contra o PCP e o seu Congresso, que tentaram proibir até ao último dia. Não conseguiram, mas o seu esforço deve ter agradado aos que, longe dos holofotes mas ao leme dos acontecimentos, mais beneficiariam da suspensão da democracia, que não serão muito diferentes daqueles para quem discursou Manuela Ferreira Leite nesse já distante ano de 2008, prometendo mais privatizações e leis laborais simpáticas. Ah, sim, era deste teor o tudo que se pretendia então pôr na ordem.




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