Fernanda Lapa – Diálogo permanente entre o teatro e a vida

Domingos Lobo

Fer­nanda Lapa quis sempre agitar as águas, criar in­co­mo­di­dade, apontar o dedo à fe­rida ex­posta

O ano de 1962, em que Fer­nanda Lapa inicia a sua longa e pro­fícua car­reira como ac­triz/​en­ce­na­dora, é um ano po­li­ti­ca­mente agi­tado: a Ar­gélia pro­clama a in­de­pen­dência, a Ja­maica e o Uganda se­guem os mesmos tri­lhos. Por cá, tendo como pre­texto o Dia do Es­tu­dante, que o go­verno havia proi­bido, a po­lícia in­vade as uni­ver­si­dades, ge­rando forte re­sis­tência por parte dos es­tu­dantes e um firme coro de pro­testos de vá­rios pro­fes­sores pro­gres­sistas; em Mo­çam­bique surge a FRE­LIMO, sob a di­recção de Edu­ardo Mon­dlane.

Alves Redol pu­blica “Bar­ranco de Cegos” e Au­gusto da Costa Dias, “A Crise da Cons­ci­ência Pe­queno-Bur­guesa”. John Stein­beck vence o Prémio Nobel de Li­te­ra­tura. Er­nesto de Sousa filma “Dom Ro­berto”.

Num pe­queno te­atro-es­túdio das Ja­nelas Verdes, Fer­nanda Lapa funda, com Fer­nando Amado, A Casa da Co­média. Aí fará, sob a di­recção de Amado, a peça De­seja-se Mu­lher, de Al­mada Ne­greiros. Anos mais tarde, em 1972, es­tre­ando-se como en­ce­na­dora, di­ri­girá este mesmo texto, tendo a irmã, São José Lapa, como in­tér­prete.

A Casa da Co­média trans­for­mará o pa­no­rama te­a­tral desses anos, pen­sando o te­atro como forma de ques­ti­onar a com­ple­xi­dade so­cial do seu tempo. As con­cep­ções te­a­trais de ambos, os textos es­co­lhidos cons­ti­tuem-se pla­ta­forma dessa sa­lutar ex­pe­ri­ência. A Casa da Co­média será, nos anos 1960/​70, um al­fobre de novas abor­da­gens te­a­trais es­té­ticas, de re­ve­lação de en­ce­na­dores e ac­tores. Um te­atro as­su­mindo a sua li­ber­dade e in­de­pen­dência, mesmo sob o jugo da cen­sura. Nesse pe­queno es­paço foram mon­tados al­guns es­pec­tá­culos me­mo­rá­veis: Dias Fe­lizes, de Bec­kett, A Dança da Morte, de Strind­berg, Morte e vida Se­ve­rina, de João Ca­bral de Melo Neto, entre tantos ou­tros.

Fer­nanda Lapa dirá que «um te­atro sem con­flito, que não co­loque ques­tões e que não ponha as ideias em dis­cussão» não lhe in­te­ressa. O con­flito maior, pre­sente nos textos que en­cenou, aborda as ques­tões nu­cle­ares da mu­lher, o ab­surdo e a in­jus­tiça da sua con­dição, desde a «fada do lar» à pros­ti­tuta. Pug­nará por um te­atro que en­frente e re­flicta as ques­tões da de­si­gual­dade so­cial entre ho­mens e mu­lheres, a su­bal­ter­ni­dade a que o sis­tema ca­pi­ta­lista vem su­jei­tando as mu­lheres, ne­gando-lhes di­reitos bá­sicos. Mesmo no te­atro.

Fer­nanda Lapa re­jei­tava um mundo di­vi­dido entre ho­mens com poder e mu­lheres sub­missas. Quis sempre agitar as águas, criar in­co­mo­di­dade, apontar o dedo à fe­rida ex­posta, se­guindo o pi­o­nei­rismo de Maria Lamas.

Na Po­lónia tra­ba­lhou com Szajna e Zig­munt Hubner, teó­ricos e en­ce­na­dores muito res­pei­tados; es­ta­giou no Te­atro La­bo­ra­tório de Gro­towski, esse mi­to­ló­gico centro das grandes trans­for­ma­ções da arte cé­nica con­tem­po­rânea; passou pelo Te­atro de Wro­claw e pelo Te­atro Stary de Cra­cóvia. Re­co­lheu aí sa­beres que lhe per­mi­tiram moldar a forma como foi con­ce­bendo os seus es­pec­tá­culos, como os in­te­grou nas di­nâ­micas con­cep­tuais, so­ciais e po­lí­ticas que agi­taram o País do pós 25 de Abril.

A trans­for­mação ne­ces­sária co­me­çava pela luta em favor dos mais ex­plo­rados e, entre eles, as mu­lheres eram, por con­dição so­cial e cul­tural, as mais des­fa­vo­re­cidas. O te­atro era, neste con­texto, que es­tará na base da cri­ação da “Es­cola de Mu­lheres”, um meio, arma eficaz de luta, dado que «o te­atro re­flecte todas as con­tra­di­ções, avanços e re­cuos do papel da mu­lher na so­ci­e­dade con­tem­po­rânea», no dizer de Lapa. E, num poema de in­cen­tivo às mu­lheres, contra a vi­o­lência do­més­tica, de­ter­mi­nada e as­ser­tiva, es­creveu: Eu de­sejo-te co­ragem para dizer basta/​De­sejo que es­queças quem te es­queceu/​De­sejo que possas fe­char portas e abrir ja­nelas.

Fer­nanda Lapa es­teve sempre, nos 58 anos de car­reira, em diá­logo com a Vida através do Te­atro, sa­bendo que o Te­atro também pode servir para trans­formar a Vida.

Numa das nossas úl­timas con­versas, de­pois de ter lido a minha peça A Fome dos Corvos, disse-me: «Gos­tava muito de en­cenar a tua peça, só não sei se terei tempo...»

In­fe­liz­mente, não teve.




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