Uma casa portuguesa

Correia da Fonseca

Foi uma breve reportagem da CMTV, podia ter sido de qualquer outro canal pois nela não estava envolvida, nem explícita nem implicitamente, qualquer crítica a uma eventual entidade responsável. Mas resultou que foi chocante pelo menos em alguma medida: a câmara visitava as condições de habitação de uma família portuguesa não durante os anos negros da ditadura fascista, tempo em que nada nos poderá surpreender, mas hoje mesmo, quando já não estamos longe de meio século de democracia com tudo o que isso implica ou pelo menos promete. Nem sequer poderá alegar-se como uma espécie de explicação que a reportagem se deslocara a um lugar remoto perdido na lonjura de umas largas centenas de quilómetros de Lisboa: câmara e microfone apenas se haviam limitado a galgar o Tejo e percorrer depois pouco mais de meia centena de quilómetros. Após esta distância estar-se-ia pois na área de Setúbal, que está longe de ser uma urbe minúscula e secundária: pelo contrário, será até legítimo supor que Setúbal projecta a sua pujança e os seus efeitos largos quilómetros em redor. O que aliás decerto acontece.

A um metro

A reportagem visitou, pois, as condições de habitação em que sobrevive uma família portuguesa, pais e crianças, num lugar da área de Setúbal, e o que nos foi mostrado poderá, deverá, ter chocado muitos telespectadores não apenas atentos mas também mobilizados para a sua condição de cidadãos: bastará talvez referir como dado significativo que a casa de banho é utilizada como quarto de dormir, o que implica que adultos e/ou crianças têm de passar a noite a cerca de um metro da sanita. Dir-se-á talvez que sobreviver numa barraca coberta com chapas de zinco, como ainda acontece por esse país fora, será ainda pior, embora a eventual afirmação careça de prova, mas a questão da habitação dos portugueses não pode ser resolvida com o argumento de que as coisas ainda podem ser piores. Aliás, embora a reportagem da CMTV se tenha dirigido à área de Setúbal, não poderemos incorrer na ingenuidade, se não armadilha, de concluir que condições de habitação assim são típicas e exclusivas da zona daquela cidade. Em verdade, o contrário é que será certo: de norte a sul e mesmo considerando apenas as zonas urbanas e suburbanas, as condições de habitação dos portugueses são frequentemente deploráveis, para não usar qualificação mais chocante. É certo que durante os decénios mais recentes foram eliminados muitos «bairros de barracas», mas ninguém quererá aceitar que esse facto resolveu a questão: também aqui é óbvia a ausência de medidas que defendam as largas maiorias contra o poder de minorias e também aqui é necessária e urgente a intervenção do poder executivo. Para que terminem, designadamente, as noites em que crianças dormem a um metro de sanitas.




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