O futuro do cinema cabe no bolso II

Marta Pinho Alves

Contemporaneamente, o cinema elaborado por telemóveis é uma prática comum entre não-profissionais e profissionais

Roger Odin, teórico do cinema durante muito tempo dedicado ao estudo do cinema amador, foi um dos primeiros autores a analisar o cinema inicial realizado com telemóveis. O autor estabeleceu uma distinção entre o que designou por cinema uno, que definiu como o cinema fotográfico do ‘vestígio’, feito para ser visto numa sala, por um espectador com uma disciplina de visão específica – a experiência cinemática convencional –, e cinema duo, que descreveu como aquele que é feito e fruído em múltiplos equipamentos. No âmbito da segunda categoria, integrou o que considerou uma nova manifestação cinematográfica emergida da utilização de equipamentos móveis multifuncionais que permitem registar imagens, em particular os telemóveis. Para a designar, o académico francês usou a expressão ‘cinema p’ – a inicial ‘p’ que compõe esta expressão alude a portátil, elaborado com telemóvel (telephone portable, no original em francês), de bolso (poche, em francês), pequeno (petit, em francês).

O cinema de bolso nasceu associado a equipamentos de baixa resolução, muito distantes de outras câmaras digitais, já dotadas nesse período de maiores recursos, e dos smartphones contemporâneos. Por essa razão, seria caracterizado, como sugeriu Odin, por uma estética particular, fundada nas suas condições materiais que não podiam ser inferidas a partir do cinema tradicional e exigiria um tipo de espectador próprio. Estas especificidades, que eram resultantes de condicionalismos e/ou limitações técnicas, eram entendidas como definidoras da sua identidade estética e narrativa.

Alguns aspectos decorrentes daquelas características técnicas foram destacados por Odin como criadores de uma nova estética e novos modos narrativos. Neste domínio o autor identificou duas tendências fundamentais. Uma primeira, que designou por pictorialismo, manifestada mediante a semelhança estabelecida entre as imagens do cinema de bolso e a pintura. Na sua perspectiva, a similitude era evidenciada pelo formato do enquadramento (vertical, em vez de horizontal), presente em vários filmes de telemóvel, e, em particular, pela aproximação entre a grande pixelização presente nas imagens de baixa definição e pinceladas. La Perle, filme de 2007, da autoria de Marguerite Lantz, que reconstituiu a representação do quadro Rapariga com Brinco de Pérola do pintor Johannes Vermeer, seria exemplificador desta tendência. O mesmo decorre ao longo de sensivelmente cinco minutos, num plano aproximado, sem interrupções, filmado na vertical. A alusão à pintura, aqui evidenciada pelo próprio tema da curta-metragem, é acentuada pelos pixéis muito visíveis na sua construção.

A outra tendência a que se refere Odin é a importância do pixel na construção da diegese da história narrada. Why Didn‘t Anybody Tell Me It Would Become This Bad in Afghanistan, também de 2007, assinado por Cyrus Frisch, é ilustrador do propósito apontado por Odin. Neste filme, o realizador optou por efectuar o registo deliberadamente com um telefone de baixa resolução, de modo a representar a percepção fragmentada e alienada do seu protagonista.

Contemporaneamente, o cinema elaborado por telemóveis é uma prática comum entre não-profissionais e profissionais, mesmo para filmes de longa duração. Os resultados estéticos e narrativos já não evidenciam o seu material de registo, mas antes procuram ocultá-lo. Sean Baker, realizador de Tangerine, a que se aludiu na parte I, referiu em múltiplas entrevistas que o facto de o filme ter sido filmado deste modo não foi revelado até à sua estreia em Sundance, o que manifesta a vontade de ocultar este aspecto, mais do que acentuá-lo ou torná-lo material promocional.




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