Estranho
«Chegamos à capital do país para descontar um cheque. Quando os arquitectos da nossa República escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, assinaram uma nota promissória, que seria herdada por todos os americanos. Essa nota promissória era uma promessa de que todos os homens, sim, homens negros e brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis da vida, da liberdade e da busca da felicidade. Hoje é claro que os Estados Unidos não cumpriram essa nota promissória em relação aos cidadãos negros. Viemos recolher esse cheque, um cheque que nos dará as riquezas da liberdade e a segurança da justiça.» Mais de meio século depois de Martin Luther King ter proferido estas palavras, não só o cheque continua por descontar como, por mais juros que sejam cobrados, poderá alguma vez cobrir o sangue derramado.
A semelhança do que se passa hoje nos EUA, na sequência do assassinato de um homem negro, George Floyd, por um polícia branco, Derek Chauvin, em Minneapolis, com a luta dos anos sessenta do século passado pelos direitos civis dos negros, termina no entanto nessa imensa dívida que não pára de aumentar.
A marcha que em Agosto de 1963 levou a Washington duzentas e cinquenta mil pessoas, negras e brancas, clamando por liberdade, trabalho, justiça social e pelo fim da segregação racial, pautou-se pela organização e pela forma pacífica como decorreu. Não houve conflitos nem distúrbios, como alguns temiam, que pusessem em causa a aprovação da legislação dos direitos civis, então para aprovação no Congresso.
Já os acontecimentos da última semana parecem cada vez mais envoltos numa nebulosa teia de interesses. Não que haja alguma coisa de estranho no facto de a bestialidade do assassínio de Floyd, transmida para todo o mundo, suscitar a mais viva indignação, e que as pessoas se mobilizem exigindo a Justiça que há muito escasseia. Não, não é isso. O que é estranho é a transformação de manifestações pacíficas durante o dia em vandalismo puro e duro durante a noite; o que é estranho é a existência de grupos organizados que se deslocam de cidade em cidade para provocar distúrbios; o que é estranho é que de repente as mais diversas entidades e empresas se mostrem tão empenhadas em tomar partido; o que é estranho é que se noticie e amplie hoje o que é costume escamotear; o que é estranho é que um chefe da polícia mande calar o presidente, por mais incendiário que este seja...
É como se os EUA estivessem por estes dias a provar o próprio veneno das «revoluções coloridas» ou das «primaveras» que promovem pelo mundo. Será? E a quem interessa isso? Parafraseando Luther King, «o que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons».