O 18 de Brumário de Donald Trump

António Santos

Que ninguém se equivoque: as manifestações que sacodem 125 cidades dos EUA são a antecâmara de uma viragem histórica. O homicídio filmado de George Floyd, quase nove minutos de lenta e deliberada asfixia sob o joelho de um polícia branco, não é mais nem menos chocante que os homicídios de Eric Garner, Michael Brown, Laquan McDonald, Tamir Rice, Walter Scott e centenas de outros afro-americanos desarmados, assassinados por serem negros.

De forma análoga, os protestos de Minneapolis também não diferem, na raiva e na justiça, dos que, há mais de meio século, exigem o fim do terrorismo racista. Há, contudo, três novas variáveis que serão decisivas: em primeiro lugar, a poderosa demonstração de força das massas a que o mundo assiste há uma semana evoluiu qualitativamente de um protesto pela defesa da vida dos negros para um protesto pró-democracia; em segundo, esses protestos coincidem com a eclosão da pior crise económica e social dos últimos cem anos e a que se soma a pandemia que, naquele país, já cobrou 105 mil vidas; finalmente, a Casa Branca encontra-se ocupada por um fascista cuja sobrevivência política depende da crise perpétua e da guerra infinita.

Nunca, desde a guerra civil, os Estados da América estiveram tão divididos. A fractura é profunda em todos os andares da sociedade: atravessa as contradições entre a classe dos capitalistas; rasga o sistema bipartidário dos seus representantes políticos; separa, com ódio e violência, os trabalhadores pela cor da sua pele; afasta os Estados do governo federal e o Norte do Sul; e cresce tanto que, mais que uma fractura, bem lhe poderíamos chamar uma fossa comum entre pobres e ricos, entre exploradores e explorados.

Como um dia escreveu Marx referindo-se a Napoleão III, são estas condições que permitem que «uma mediocridade grotesca faça o papel do herói». Trump ensaia um golpe de Estado, o seu próprio 18 de Brumário, que já ultrapassou aliás os limites da Constituição. Cognomina-se «presidente da lei e da ordem» para, contra a vontade dos governadores estaduais, mobilizar mais de 17 mil soldados para reprimir os protestos. Trump vai ainda mais longe e, numa reunião com governadores e chefes militares, anuncia planos para a ocupação militar de todo o território e promete condenar os manifestantes a penas de dez anos de prisão ao abrigo de leis anti-terroristas.

Na mesma esteira, o presidente-magnata inscreveu o «antifa», ou seja o antifascismo, na lista das organizações terroristas. Um congressista da Florida, Matt Gaetz, apressou-se a celebrar a decisão de Trump apelando a que se «cacem [antifascistas] como fazemos no Médio Oriente». É óbvio que a ligação antifa-terrorismo é absurda (ou a CIA já os teria armado), mas é suficientemente ambígua para prender extrajudicialmente qualquer opositor.

À data da redacção deste texto, são já mais de 6000 os detidos. Os mortos, para já, são cinco. Abundam as imagens da polícia a atropelar manifestantes pacíficos com automóveis e cavalos. São às dezenas os jornalistas e os médicos detidos. Há vídeos da polícia a disparar indiscriminadamente balas de borracha contra a multidão e a usar armas químicas contra pessoas indefesas. Depois de várias horas escondido num bunker da Casa Branca, Trump ordenou a invasão de Washington DC por milhares de soldados, agentes dos serviços secretos e polícias militarizados, que dissolveram violentamente as manifestações pacíficas. Depois, como assumindo o golpe, Trump saiu da casa Branca a pé e, de Bíblia na mão, percorreu as ruas ocupadas pelo exército até à igreja de São João, onde prometeu «dominar as ruas». Repito, isto é um protesto pró-democracia contra um regime ditatorial que reprime e mata o seu próprio povo.



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