Dragões, anões e biliões
Pela primeira vez na história, as 400 famílias mais ricas dos EUA, ou os bilionários, pagaram menos impostos do que 50 por cento das famílias mais pobres. É esta a conclusão do mais recente livro dos economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, O Triunfo da Injustiça: em 2018 os bilionários estado-unidenses pagaram impostos de 23 por cento sobre os seus rendimentos ao passo que a metade mais pobre da classe trabalhadora pagou 24,2 por cento. Da evolução histórica destes números resulta todo um tratado sobre a luta entre as classes: em 1980 esses bilionários pagavam 47 por cento e em 1960 pagavam 56 por cento. Em entrevista ao Washington Post, os economistas explicaram que normalmente os estudos sobre a desigualdade incidem sobre os 1 por cento mais ricos, ou mesmo os 0,1 por cento mais ricos, camuflando o peso destes 400 bilionários: «têm uma influência política, económica e financeira completamente desproporcional, são autênticos dragões», sintetizaram.
Ponto de ordem à mesa: um bilionário, para quem nunca viu nenhum, é uma pessoa que acumulou mais de mil milhões, neste caso de dólares, portanto mais do que qualquer indivíduo seria capaz de gastar se vivesse mais cem vidas, enquanto outros seres humanos morrem de fome. Um bilionário é o equivalente humano a Smaug, o dragão inventado por Tolkien para guardar ferozmente uma montanha de ouro e pedras preciosas que nunca usará e que só depois de morto partilhará.
O alívio sistemático da carga fiscal dos bilionários é o corolário intencional de décadas de produção legislativa em Washington DC, cidade do país mais rico do mundo onde, neste ano que agora finda, 81 pessoas morreram de frio nas ruas. Ano após ano, agudizaram-se as contradições entre democratas e republicanos mas, curiosamente, as medidas de alívio fiscal dos milionários continuaram a granjear amplos consensos bipartidários. Um exemplo revelador desta aparente contradição teve palco no Congresso, na semana passada: os mesmos congressistas democratas que votaram o impeachment de Trump juntaram-se, no dia seguinte, aos republicanos para aprovar o aumento do maior orçamento de guerra da história: agora com mais 738 mil milhões de dólares. No mesmo espírito construtivo, democratas e republicanos concordaram em dotar a construção do muro com o México de mais 1,3 mil milhões e ainda no mesmo dia, autorizaram Trump a desviar mais financiamento militar para o muro, confirmaram um corte de cinquenta por cento no orçamento do magro programa de saúde pública de Porto Rico e removeram os obstáculos legais que exigiam o aval do Congresso antes de uma agressão contra o Irão.
O impeachment, que o Senado provavelmente afundará, é um sintoma da maior crise política do capitalismo estado-unidense desde a guerra civil, mas ambos os partidos, por mais que se digladiem publicamente, no fim do dia continuam a servir a classe dos bilionários. O partido único é bicéfalo, e serve Smaug.
Pode parecer impensável enfrentar um dragão tão poderoso sem sequer uma organização de classe. No Hobbit, de Tolkien, a certo ponto, Bilbo pergunta ao velho e enorme dragão deitado sobre montanhas de ouro roubado: «Com certeza, ó Smaug, o incalculavelmente opulento, deve saber que o seu sucesso lhe trouxe alguns inimigos implacáveis?» e o Dragão ria-se «Eu devorei o teu povo como um lobo entre cordeiros (...) Eu mato quem quiser e onde quiser e ninguém ousa resistir. Eu derrubei os guerreiros de antigamente, e hoje não há ninguém no mundo como eles. (...) A minha armadura é como dez camadas de escudos, os meus dentes são espadas, as minhas garras, lanças, o choque de minha cauda é como um raio, as minhas asas, como um furacão, e a minha respiração é a morte! — Eu sempre pensei — disse Bilbo, numa voz fina e apavorada — que dragões eram mais macios na parte de baixo, especialmente na região do peito, mas sem dúvida um dragão tão armado já pensou nisso». Até os maiores dragões têm essa região do peito que pode ser trespassada, por um hobbit, ou um anão, ou um povo.