Dragões, anões e biliões

António Santos

Pela pri­meira vez na his­tória, as 400 fa­mí­lias mais ricas dos EUA, ou os bi­li­o­ná­rios, pa­garam menos im­postos do que 50 por cento das fa­mí­lias mais po­bres. É esta a con­clusão do mais re­cente livro dos eco­no­mistas Em­ma­nuel Saez e Ga­briel Zucman, O Triunfo da In­jus­tiça: em 2018 os bi­li­o­ná­rios es­tado-uni­denses pa­garam im­postos de 23 por cento sobre os seus ren­di­mentos ao passo que a me­tade mais pobre da classe tra­ba­lha­dora pagou 24,2 por cento. Da evo­lução his­tó­rica destes nú­meros re­sulta todo um tra­tado sobre a luta entre as classes: em 1980 esses bi­li­o­ná­rios pa­gavam 47 por cento e em 1960 pa­gavam 56 por cento. Em en­tre­vista ao Washington Post, os eco­no­mistas ex­pli­caram que nor­mal­mente os es­tudos sobre a de­si­gual­dade in­cidem sobre os 1 por cento mais ricos, ou mesmo os 0,1 por cento mais ricos, ca­mu­flando o peso destes 400 bi­li­o­ná­rios: «têm uma in­fluência po­lí­tica, eco­nó­mica e fi­nan­ceira com­ple­ta­mente des­pro­por­ci­onal, são au­tên­ticos dra­gões», sin­te­ti­zaram.

Ponto de ordem à mesa: um bi­li­o­nário, para quem nunca viu ne­nhum, é uma pessoa que acu­mulou mais de mil mi­lhões, neste caso de dó­lares, por­tanto mais do que qual­quer in­di­víduo seria capaz de gastar se vi­vesse mais cem vidas, en­quanto ou­tros seres hu­manos morrem de fome. Um bi­li­o­nário é o equi­va­lente hu­mano a Smaug, o dragão in­ven­tado por Tol­kien para guardar fe­roz­mente uma mon­tanha de ouro e pe­dras pre­ci­osas que nunca usará e que só de­pois de morto par­ti­lhará.

O alívio sis­te­má­tico da carga fiscal dos bi­li­o­ná­rios é o co­ro­lário in­ten­ci­onal de dé­cadas de pro­dução le­gis­la­tiva em Washington DC, ci­dade do país mais rico do mundo onde, neste ano que agora finda, 81 pes­soas mor­reram de frio nas ruas. Ano após ano, agu­di­zaram-se as con­tra­di­ções entre de­mo­cratas e re­pu­bli­canos mas, cu­ri­o­sa­mente, as me­didas de alívio fiscal dos mi­li­o­ná­rios con­ti­nu­aram a gran­jear am­plos con­sensos bi­par­ti­dá­rios. Um exemplo re­ve­lador desta apa­rente con­tra­dição teve palco no Con­gresso, na se­mana pas­sada: os mesmos con­gres­sistas de­mo­cratas que vo­taram o im­pe­a­ch­ment de Trump jun­taram-se, no dia se­guinte, aos re­pu­bli­canos para aprovar o au­mento do maior or­ça­mento de guerra da his­tória: agora com mais 738 mil mi­lhões de dó­lares. No mesmo es­pí­rito cons­tru­tivo, de­mo­cratas e re­pu­bli­canos con­cor­daram em dotar a cons­trução do muro com o Mé­xico de mais 1,3 mil mi­lhões e ainda no mesmo dia, au­to­ri­zaram Trump a des­viar mais fi­nan­ci­a­mento mi­litar para o muro, con­fir­maram um corte de cin­quenta por cento no or­ça­mento do magro pro­grama de saúde pú­blica de Porto Rico e re­mo­veram os obs­tá­culos le­gais que exi­giam o aval do Con­gresso antes de uma agressão contra o Irão.

O im­pe­a­ch­ment, que o Se­nado pro­va­vel­mente afun­dará, é um sin­toma da maior crise po­lí­tica do ca­pi­ta­lismo es­tado-uni­dense desde a guerra civil, mas ambos os par­tidos, por mais que se di­gla­diem pu­bli­ca­mente, no fim do dia con­ti­nuam a servir a classe dos bi­li­o­ná­rios. O par­tido único é bi­cé­falo, e serve Smaug.

Pode pa­recer im­pen­sável en­frentar um dragão tão po­de­roso sem se­quer uma or­ga­ni­zação de classe. No Hobbit, de Tol­kien, a certo ponto, Bilbo per­gunta ao velho e enorme dragão dei­tado sobre mon­ta­nhas de ouro rou­bado: «Com cer­teza, ó Smaug, o in­cal­cu­la­vel­mente opu­lento, deve saber que o seu su­cesso lhe trouxe al­guns ini­migos im­pla­cá­veis?» e o Dragão ria-se «Eu de­vorei o teu povo como um lobo entre cor­deiros (...) Eu mato quem quiser e onde quiser e nin­guém ousa re­sistir. Eu der­rubei os guer­reiros de an­ti­ga­mente, e hoje não há nin­guém no mundo como eles. (...) A minha ar­ma­dura é como dez ca­madas de es­cudos, os meus dentes são es­padas, as mi­nhas garras, lanças, o choque de minha cauda é como um raio, as mi­nhas asas, como um fu­racão, e a minha res­pi­ração é a morte! — Eu sempre pensei — disse Bilbo, numa voz fina e apa­vo­rada — que dra­gões eram mais ma­cios na parte de baixo, es­pe­ci­al­mente na re­gião do peito, mas sem dú­vida um dragão tão ar­mado já pensou nisso». Até os mai­ores dra­gões têm essa re­gião do peito que pode ser tres­pas­sada, por um hobbit, ou um anão, ou um povo.

 



Mais artigos de: Internacional

Conselho Mundial da Paz reforça movimento em 2020

PLANO O Con­selho Mun­dial da Paz di­vulgou o plano de acção para 2020, apro­vado pelo seu se­cre­ta­riado, reu­nido no Laos. Com essas ini­ci­a­tivas, a or­ga­ni­zação visa re­forçar e am­pliar o mo­vi­mento pela paz e a luta anti-im­pe­ri­a­lista.

Manuel Marrero foi eleito primeiro-ministro de Cuba

CONS­TITUIÇÃO Cuba volta a ter um pri­meiro-mi­nistro, como es­ta­be­lece a sua nova Cons­ti­tuição da Re­pú­blica. O par­la­mento elegeu chefe do go­verno o até agora mi­nistro do Tu­rismo, Ma­nuel Mar­rero.

Colômbia: um mês de protestos contra a violência e pela paz

A Colômbia vive há mais de um mês protestos anti-governamentais contra a violência e pela paz, algo que não se via há décadas no país. As acções tiveram início com a greve nacional de 21 de Novembro durante a qual diversos sectores saíram às ruas para expressar descontentamento e exigir medidas efectivas na educação,...

EUA aprovam orçamento militar de 738 mil milhões de dólares

O presidente dos EUA, Donald Trump, assinou na sexta-feira, 20, o orçamento militar de 738 milhões de dólares que cria uma Força Espacial e impõe sanções contra os gasodutos Nord Stream 2 e TurkStream. Além disso, são financiadas novas iniciativas para fazer frente ao que Washington classifica como «ameaças» da Rússia e...