Golpistas na Bolívia intensificam repressão
PERSEGUIÇÕES A par de uma nova lei eleitoral e de manobras para legitimar o golpe de Estado, as autoridades de facto da Bolívia intensificam a repressão contra o povo e a perseguição a figuras do governo de Evo Morales.
Oficiais golpistas do exército e da polícia foram treinados nos EUA
O governo da autoproclamada presidente interina Jeanine Áñez ordenou à procuradoria de justiça a detenção do ex-ministro da Presidência, Juan Ramón Quitana, com base numa denúncia por alegados delitos de terrorismo, instigação à delinquência e sedição. A ordem de detenção confirma as intenções dos golpistas de criminalizar os principais dirigentes do governo constitucional, incluindo Evo Morales.
A perseguição aos líderes sociais e a criminalização dos protestos contra o golpe de Estado contrastam com a impunidade em torno da onda de violência desencadeada pela direita após as eleições de 20 de Outubro, assim como a repressão brutal após o afastamento de Morales.
Persistentes mobilizações populares em algumas zonas do país e vozes que se elevam contra a repressão e a promulgação de uma lei para novas eleições marcam assim o complexo panorama na Bolívia, mais de duas semanas depois do golpe de Estado.
«Estamos a viver uma época de terror», afirmou Sonia Brito, deputada do Movimento para o Socialismo (MAS), a força política que dirigiu os destinos do país nos últimos 13 anos. Perseguem dirigentes do MAS, disse a parlamentar a uma rádio local, em La Paz. Revelou que 68 autoridades de diferentes níveis foram obrigadas a renunciar no contexto da conspiração golpista de 10 de Novembro.
Garantias democráticas
Na mesma linha pronunciou-se, a partir do Brasil, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Diego Pary, que participou no VII Congresso do Partido dos Trabalhadores (PT). «O mais importante agora é alcançar a pacificação e solucionar a crise por via eleitoral», considerou Pary em referência à promulgação pelo governo golpista, no domingo, 24, de uma lei que convoca novas eleições e anula as que foram ganhas por Evo Morales a 20 de Outubro com 47 por cento dos votos, além de vetar a sua eventual futura candidatura.
Para o ex-ministro constitucional, citado pela Prensa Latina, essa lei deve ser acompanhada de garantias, já que, por exemplo, «não há garantias para o regresso de Evo à Bolívia», por parte do governo de facto, que se vai consolidando no poder graças à brutal repressão sobre o povo – foram registados pelo menos 33 mortos, centenas de feridos e de detidos – e ao indisfarçável conluio dos EUA e aliados com os golpistas.
A Lei do Regime Excepcional e Transitório para a realização de Eleições Gerais fixa um prazo de 20 dias para que a Assembleia Legislativa Plurinacional eleja os membros do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), tendo em vista a fixação para 2020 da data das novas eleições.
A aprovação do projecto de lei para a convocatória do acto eleitoral reconhece a participação de todas as organizações políticas, mas impossibilita a candidatura de quem tenha sido reeleito nos dois períodos constitucionais anteriores.
De acordo com o senador Milton Baron, do MAS, os dois terços que essa organização possui na câmara alta garantem a convocação de eleições e procuram que os vogais do TSE e dos órgãos eleitorais departamentais sejam escolhidos «por consenso e por unanimidade».
Dois dos principais instigadores da violência e do golpe de Estado, Luis Fernando Camacho e Marco Pumari, já anunciaram que não descartam a possibilidade de participar nas próximas eleições, inclusive como parelha presidencial.
Pela sua parte, através de uma mensagem na rede social Twitter, Evo Morales, asilado no México, lamentou que os grupos de choque da auto-proclamada presidente Jeanine Áñez em La Paz agridam cidadãos e familiares das vítimas que pretendem apresentar denúncias de violações de direitos humanos.
Golpistas foram treinados nos EUA
Vários oficiais militares e policiais apontados como estando entre os principais conspiradores do golpe de Estado executado contra o presidente constitucional da Bolívia, Evo Morales, foram treinados pelas forças armadas dos EUA através de diversos programas.
Os pormenores vieram à luz do dia num artigo publicado no sítio digital The Gray Zone e somam-se às informações em La Paz sobre a responsabilidade de Washington na golpada de 10 de Novembro, que forçou a renúncia do primeiro presidente indígena da nação andina-amazónica.
Segundo o material jornalístico divulgado, a cúpula dos militares e polícias bolivianos passaram pela Escola das Américas, conhecida desde 2001 como Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança. Os que deram apoio ao golpe de Estado, precisa o texto, participaram num «programa de intercâmbio policial» denominado Apala, desenhado para «construir relações entre as autoridades estado-unidenses e os oficiais dessas forças nos estados latino-americanos». Apesar da sua influência, ou talvez por isso, o programa tem pouca visibilidade pública, observa o artigo.
O papel dos oficiais militares e policiais treinados por Washington foi fundamental para precipitar a denominada mudança de regime no país, explica o texto de Jeb Spraque, intitulado «Cúpula golpista na Bolívia foi treinada nos EUA na Escola das Américas e em cursos do FBI».
O autor considera que a conspiração golpista não poderia ter tido êxito sem a aprovação desses comandantes militares e policiais, muitos dos quais «foram preparados e educados para a insurreição».
Gravações áudio agora reveladas evidenciam que houve uma coordenação encoberta entre actuais e antigos líderes da polícia, do exército e da oposição conspiradora para provocar o golpe.
Antes da renúncia de Evo Morales, o comandante das Forças Armadas da Bolívia, general Williams Kaliman, «sugeriu» ao presidente que se demitisse, argumentando que sectores da polícia já se tinham amotinado.
Embora Kaliman tenha fingido lealdade a Morales ao longo de anos, foi um actor principal do golpe. Esteve em Washington, por pouco tempo, como adido militar da embaixada da Bolívia na capital dos EUA. Antes, lembra o The Gray Zone, foi aluno da Escola das Américas em 2003. Agora, apenas 72 horas depois do golpe de Estado recebeu a recompensa pela traição – um milhão de dólares – e foi viver para os Estados Unidos.
Para os historiadores, não é uma surpresa. A outrora Escola das Américas – localizada em Fort Benning, na Georgia – tem antecedentes de ter sido um viveiro de golpistas na América Latina durante as décadas de 1960, 1970 e 1980.