Qual democracia?

Anabela Fino

De tudo o que já se disse sobre o resultado das eleições de domingo no Brasil a afirmação mais espantosa é provavelmente a do comissário europeu de Assuntos Económicos, Pierre Moscovici, que atribui o triunfo de Jair Bolsonaro a uma espécie de «cansaço democrático» fruto dos efeitos da crise que deixou «desigualdades impressionantes».

Integrando a eleição de Bolsonaro na tendência de recuo das «democracias liberais» em todo o mundo, Moscovici considera que este fenómeno «está talvez ligado a uma forma de cansaço democrático, sobre a qual aqueles que têm a democracia no coração deveriam reflectir, de modo a organizar um contra-ataque».

Intervindo esta segunda-feira, 29, no canal parlamentar francês Public Sénat, Moscovici classificou o Bolsonaro de «democrata não liberal». Democrata «porque chega ao poder através das urnas» e não liberal «porque uma vez no poder eles (os não liberais) têm dificuldade em largá-lo».

As declarações do comissário europeu, que reconheceu ainda que as primeiras vítimas dos «populistas de extrema-direita» como Bolsonaro são as «minorias, os media, a independência da justiça», são reveladoras desde logo do conceito de democracia.

Segundo Moscovici, para ser «democrata» basta ser eleito, pouco importando os golpes institucionais, as campanhas baseadas em notícias falsas, etc., etc., etc. Hitler foi eleito, para os que não se lembram.

Mais, para o comissário democracia rima com liberalismo, como se o liberalismo reinante não fosse a expressão do capitalismo selvagem, gerador das crises e das «impressionantes desigualdades».

Cansaço da democracia? Mas qual democracia? A da União Europeia que espera «fortalecer a parceria com o novo governo» brasileiro e que Bolsonaro trabalhe para «consolidar a democracia» no Brasil, apesar de ser um admirador da ditadura militar, de o seu vice-presidente ser um defensor de golpes de Estado, de o muito moralista futuro ministro da Casa Civil ter admitido haver recebido no passado recente recursos não declarados para cobrir gastos de campanha, e de Bolsonaro filho, deputado eleito (logo democrata!) dizer que para fechar o Supremo Tribunal Federal basta um cabo?

Qual democracia? A de Fernando Henrique Cardoso, antigo presidente do Brasil, de Ciro Gomes e de outros, como por cá Assunção Cristas, que perante o perigo fascista ficam em cima do muro, demasiado enferrujados para abrir portas à unidade ou sonhando com oportunidades futuras?

A dos «mercados», que abriram em alta com a vitória fascista?

Alguém devia explicar ao senhor Moscovici que a «democracia liberal» abre o caminho ao fascismo. O «contra-ataque» é a luta pela verdadeira democracia que o povo brasileiro, como os povos de todo o mundo, vai continuar a travar. Sem cansaço.




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