Insalubridade
A intervenção de Trump na ONU não pode ser tomada com ligeireza
O discurso de Trump na 73.ª Assembleia-geral das Nações Unidas ressoou no mundo pelas piores razões. Na sala provocou risos e desconcerto, apreensão e indignação. Na sua análise houve quem, não renegando o teor insultuosamente demagógico – até ostensivamente mentiroso – e arrogante, tenha primado pela sua redução ao prisma anedótico. Linha de pensamento não distante daquela outra que, diabolizando Trump, como se este se tratasse de um corpo estranho ao sistema, contrapõe-o, qual besta negra, à virtuosa e pujante «democracia americana».
Metafísica à parte, é uma forma de alijar incómodos nexos e responsabilidades de classe. Há que evitar a fulanização da questão e perscrutar o seu enquadramento concreto neste tempo conturbado. A intervenção do presidente da principal potência imperialista na sede da ONU é demasiado grave para poder ser tomada com ligeireza. Mais além de toda a desfaçatez provocadora e incongruência de argumentos, o que fundamentalmente ali perpassa é o marco de inusual afirmação explícita de anticomunismo e afronta geral à paz e ao direito internacional. Com toda a lata, um dos maiores cortes fiscais a favor (da reposição) dos lucros do grande capital norte-americano é apresentado como um sucesso económico e da criação de emprego.
«As bolsas estão em alta, o desemprego dos afro-americanos e comunidade hispânica em mínimos históricos e os EUA estão a construir o maior muro na fronteira [com o México] da história.» Na mesma toada, «o orçamento militar é o maior de sempre e em breve os EUA estarão mais fortes do que nunca» – tudo «em prol do interesse nacional e do povo americano». A defesa do excepcionalismo dos EUA adquire novo cambiante, através da encenação da exaltação patriótica do America first, do primado da soberania face a uma pretensa «governação mundial» hostil. O que não é mais do que o cúmulo da inversão da realidade, pois nem Trump nem ninguém no sistema de poder dos EUA encara minimamente a hipótese de abdicar das prerrogativas da posição dominante global do imperialismo norte-americano, do acosso da ingerência e auto-reconhecido «direito» de extraterritorialidade.
Pelo contrário. Trump invoca o défice comercial, passando por cima da hegemonia do dólar e da Wall Street na finança mundial, para tentar atacar estrategicamente a China numa cruzada contra o comando estatal do planeamento industrial e o papel das empresas públicas [na economia]. A defesa do direito de «soberania» prossegue na mais frenética e cabal apologia intervencionista: Síria, Irão, Rússia, Venezuela – reafirmando a vigência da doutrina Monroe e a «defesa» do Hemisfério Ocidental do expansionismo estrangeiro –, entre muitas outras pérolas de um discurso de inegável pendor fascizante.
Nem a Alemanha escapa ao aviso solene para se livrar da dependência energética da Rússia. E o mundo deve «resistir ao [apelo do] socialismo».
Referindo-se a Trump, Kissinger aventava recentemente tratar-se de uma daquelas figuras na história que marca o fim de uma era. O cunho eminentemente reaccionário da actual Administração decorre do quadro de agravamento da crise mundial do capitalismo e é reflexo da inocultável trajectória de declínio dos EUA. Neste movimento reside a maior ameaça e desafio colocados no plano internacional.