Genial coincidência
Há coisas assim. Certamente por mera coincidência um jornal da área económica decidiu fazer agora uma sondagem sobre o défice. A conclusão parece irrefutável. Os portugueses inquiridos – supõe-se que os que integram a redacção, respectivos familiares e outros anónimos transeuntes como Daniel Bessa que à porta do jornal passavam – morrem de amor pelo défice. Segundo a pesquisa realizada a maioria dos portugueses prefere a redução do défice ao salário, às pensões, à redução da carga fiscal e a direitos. E se o alcance da opção peremptória dos inquiridos não foi mais expressiva isso se deve apenas ao facto de no questionário não ter sido colocada a escolha entre a redução do défice e a possibilidade de verem o seu clube ser campeão. Atente-se e louve-se a oportunidade da sondagem e de quem dela se lembrou. O jornalista responsável por tal façanha, presume-se que tenha sido um profissional da escrita e não um qualquer outro trabalhador que naquele jornal ganha a vida, será digno de promoção. É daqueles rasgos de genialidade que não se deitam fora. Quando ninguém falava do défice como arma de arremesso no rescaldo dos incêndios; quando se avolumava a onda dos que a pretexto da tragédia viam nela uma oportunidade para regressar ao corte de salários, ao roubo das pensões ou a liquidação de direitos; quando alguns como Daniel Bessa de ábaco na mão concluía ruborescido que o País gastava o dinheiro todo (talvez por o artesanal instrumento de cálculo macro-económico que usa não permitir lançar a parcela dos cinco mil milhões de euros que o País tem de saldo primário positivo) para desgraça futura; quando Lourenço, o Camilo, vociferava contra a «bandalheira orçamental» – zás!, alguém depois de uma noite mal dormida, ainda estremunhado irrompeu pela redacção de ideia na mão. Dê-se graças, a partir dos centros do capital monopolista e seus servidores, por haver ainda jornais, jornalismo e personagens dotados de tão grande, inesperados e inéditos rasgos.