Mordaças

Correia da Fonseca

Durante muitos dias e talvez ainda quando este texto ganhar letra impressa, os vários canais da televisão portuguesa, os de posse privada e os que supostamente são «de todos nós» embora neles não mandemos nada, encheram-nos ouvidos e olhos com notícias do que chamaram «a caça ao homem». O homem era, no caso, um sujeito chamado Pedro João Dias de cuja biografia constam dados talvez interessantes ou, se se quiser, significativos: nasceu em Angola há mais de quarenta e dois anos, isto é, antes de 74, e cedo passou para a África do Sul. Aí recebeu treino militar e aprendeu a pilotar aviões, prendas que podem agora, em princípio, ajudá-lo no seu trajecto de fuga à perseguição das autoridades. Porque, como todo o País já sabe, o Pedro João está em fuga por ter matado pelo menos duas vezes e ter ferido gravemente outros sobre os quais disparou. Não importa alongar aqui o relato dos seus tristes feitos, do seu percurso individual que já claramente assume contornos de tragédia, fala-se aqui do Pedro Dias a propósito, ou não, de um pormenor havido durante a sua fuga: a dado passo, tendo assaltado um casal talvez para se apoderar de um carro, optou por amarrar marido e mulher e por amordaçá-los. Impedia-os assim não apenas de irem em busca de socorro pelo seu próprio pé, mas também de usarem a voz para pedirem socorro. E foi este último cuidado, digamos assim, que adequadamente ou não despertou analogias de âmbito diferente e mais amplo.

História antiga e novos métodos

A questão é que, reflectindo-se um pouco, este nosso País pode surgir como um lugar onde abundam as mordaças ainda que de um tipo especial: imateriais, invisíveis, mas tão eficazes muitas vezes como se fossem de material sólido. Há-as, por exemplo, em muitos lugares de trabalho onde falar de certo modo e/ou sobre certos assuntos é passaporte provável para uma situação de desemprego, pois é sabido que Abril e a consequente democracia ainda não puderam chegar a todos os lados. E, particularizando um pouco e abordando um sector que obviamente interessa especialmente estas duas colunas, diga-se que se pressente mordaças (quando não se saiba da sua existência por fonte segura) nos diversos meios de comunicação social que dia após dia alimentam os nossos saberes ou os nossos enganos. Em alguns casos, a aplicação de mordaças faz-se logo à entrada do órgão de comunicação, de tal modo que quase se poderia dizer, exagerando um pouco mas em sentido simbólico, que a sua imposição poderia estar confiada ao porteiro de serviço que teria instruções para só deixar entrar nas redações quem se disponha a aceitar a mordaça, quer porque é preciso viver quer porque para isso já haja alguma vocação prévia. De qualquer modo, desse cuidado resulta, como bem se compreenderá, uma peculiar espécie de silêncio paradoxalmente preenchido por ruídos (palavras, imagens sonorizadas ou não) que leva os cidadãos desprevenidos, que são quase todos, a acreditarem que estão a ser informados quando de facto estão a ser distraídos, isto é, traídos. Dito isto, não será de mais dizer que os tais cidadãos, além de vítimas do efeito de mordaças aplicadas nos lugares onde em princípio deve nascer o conhecimento das coisas e o consequente entendimento do mundo, estão também de algum modo amarrados, pois não se move para pedir auxílio (neste caso para buscar a verdade dos factos) quem julga que não precisa dele, que já está abastecido com o que essencialmente lhe interessa e lhe basta. É que a história da impostura sistemática é secular, acumulou muitas experiências e sabedorias, reforçou-se nos tempos actuais com novos métodos. Todos ou quase todos, porém, implicando a presença de uma palavra: mordaça. Para que ninguém esteja em situação de quebrar a estratégia pretendida e imposta. Para que, em princípio, não possa sobrar nenhuma fresta por onde passe o que, sem mentira, possa ser designado por informação.




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