Miró em Serralves
A saga Miró chegou ao fim. Faltam uns pormenores burocráticos e saber quanto se vai pagar à Cristhies, ficando, como é hábito, impunes os que armaram o imbróglio atropelando o quadro legal vigente. Há um efeito público no desfecho que não é desprezível, gerador de uma animação que de algum modo aplaina um olhar crítico.
Finalmente é dado ver o acervo Miró, as cinco obras que não fazem parte desta exposição não alteram certamente juízos que se façam. Curioso é confrontá-la com as muitas discussões a favor e contra ficar ou não ficar propriedade do Estado, sem que as obras fossem conhecidas ou só fossem conhecidas por um restritíssimo grupo de pessoas, na maioria sem especial conhecimento das artes. Sabia-se, presumia-se que as 85 obras tinham sido compradas a granel pelo BPN. Eram um activo do banco sem qualquer preocupação que orientasse a sua selecção. Mas isso mesmo as colecções mais criteriosas entram naturalmente na especulação financeira, embora de forma mais refinada.
No estado actual das artes a obra de arte é filtrada através das galerias, coleccionadores, instituições públicas, codifica os preconceitos e reforça a imagem de uma classe média e média-alta. A estética é transformada em elitismo através do pretensiosismo social, financeiro e intelectual. O artista é um indivíduo comercial, disfarçado. A história e a crítica valem dinheiro. Está-se bem perto dos métodos de funcionamento do sistema bancário. Por isso nada de escândalo Miró. Aliás o que é comprovado e sublinhado nas entrevistas e declarações do curador Robert Messeri, chamado para organizar a exposição (seria mesmo necessário vir um «especialista» tão especializado para orientar a colocação dos quadros?), ao recorrer a Siza Vieira para desenhar o dispositivo expositivo, à teatralidade da inauguração, ao ruído comunicacional foram o bolo em que o presidente da Câmara do Porto pousou a cereja declarando-a «notável e indivisível».
Não é notável, nem é indivisível. Nenhum artista, por mais genial que seja faz só obras notáveis e muito menos uma colecção é indivisível. É olhar para os leilões dos últimos anos ou para o celebrado Sequeira, separado da série de que faz parte, adquirido e bem pelo MNAA, por um relevante esforço de afirmação cidadã.
Proveitos
Miró é um importante pintor da radicalidade moderna, da modernidade que Octávio Paz definiu de forma precisa «a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora: a arte moderna não é somente filha da idade crítica, é crítica de si-própria». Entrou pelo surrealismo, que se poderá classificar como clássico, com estrondo abrindo novos caminhos que por sua vez abriram novos caminhos a artistas posteriores. O que está bem presente nesta exposição de Miró com obras de várias técnicas, temporalmente muito distantes, em que as conexões que se procurem estão dispersas. Há uma evidente irregularidade e errância entre elas o que torna mais evidente o modo como o pintor com as suas formas abstractas se apropria dos automatismos introduzidos pelos surrealistas para os recuperar nas formas abstractas, como deriva das propostas sobre cor iniciadas com Cézanne e Matisse, o que é particularmente interessante e acaba por conferir outra relevância a esse acervo.
De referir a alegria de Serralves em recepcionar esta exposição que pouco ou nada tem a ver com as linhas orientadoras do museu, mas que vai oferendar proveitos não negligenciáveis pela publicidade em que o acervo Miró está embrulhado. O que não é uma novidade em Serralves que conta entre as suas exposições mais visitadas e com maior visibilidade pública as de Paula Rego e Bacon que também pouco têm a ver com o seu paradigma expositivo.
Desinteressante foram as notícias televisivas que se centravam mais nas mundanidades e no valor monetário da colecção, no que valeria se fosse vendida em bloco ou peça a peça. Bolas! O Jeff Koons atinge valores astronómicos e a sua obra é, na esmagadora generalidade, uma m****. A repescagem noticiosa dos lances da tentativa de venda pelo governo PSD-CDS foram um bródio. Realce para um Barreto Xavier entrincheirado em explicações fatelas e para as intervenções da Maria Luís Albuquerque a vender chita a metro na retrosaria da austeridade. Uma comerciante de arroz do Brecht: não sei o que é o arroz, nunca vi o arroz, do arroz só sei o preço.