Comentário

O BCE e o défice democrático na UE

Miguel Viegas

O Banco Central Europeu criado à imagem do Bundesbank alemão emerge hoje como um dos maiores paradoxos desta União Europeia que nos desgoverna há tempo demais. Com efeito, toda a arquitectura do euro repousa sob a mais estrita ortodoxia monetarista. Neste enquadramento, a intervenção dos estados é reduzida ao mínimo, com a criação de um banco central único, completamente independente dos estados nacionais e com um mandato preciso baseado no controlo da inflação. Os estados nacionais, como qualquer empresa, devem recorrer aos mercados de capitais para financiar a sua actividade, numa lógica mercantil onde cabe aos mercados, através do mecanismo dos preços, avaliarem a credibilidade de quem pede emprestado.

Sucede que, desde a sua criação, e em especial desde o início da crise da zona euro, o BCE extravasou claramente o domínio das competências que lhes foram atribuídas inicialmente, agindo claramente fora do seu quadro institucional e doutrinal. Como iremos ver ao longo deste texto, o BCE foi muito para lá do seu papel de reserva de liquidez do sistema bancário. Estendeu a sua influência sobre a governança económica dos estados-membros e ganhou um poder incomensurável na supervisão bancária, aprofundando assim o défice democrático das instituições europeias em geral e do BCE em particular.

Com a actual crise da zona euro, cai mais uma vez por terra o mito da infalibilidade dos mercados e da sua capacidade de auto-regulação. O BCE, depois de ter baixado as taxas de juro ao mínimo, sem qualquer efeito prático viu-se na obrigação de anunciar, em 2012, a compra de dívida soberana em quantidades ilimitadas no mercado secundário para evitar o colapso do sistema. Mais tarde, perante a falta de crédito à economia, começou a emprestar quantidades colossais de fundos aos bancos privados, com maturidades crescentes que chegam aos quatro anos (com os chamados TLTRO). Perante o fracasso destas políticas, o BCE prepara-se agora para dar mais um passo na subversão completa do seu papel e dos seus estatutos com a compra aos bancos dos tristemente célebres títulos ABS. Estes títulos, de má memória, representam mais uma operação de alquimia financeira a partir da qual os créditos dos bancos (hipotecários mas não só) são titularizados e posteriormente vendidos no mercado bolsista onde podem ser ainda reciclados em operações sucessivas até que ninguém saiba nada relativamente ao seu conteúdo, a não ser o facto de nada valerem. Com este passo, o BCE arrisca-se assim a transformar-se numa imensa lixeira onde passarão a ser depositados os chamados activos tóxicos do sistema mais uma vez à custa do erário público.

A aplicação destes mecanismos, denominados eufemisticamente de «não convencionais», foram sempre acompanhados por uma ingerência crescente do BCE na esfera económica, limitando de forma drástica o campo de acção política quer dos estados nacionais, quer das instituições na UE eleitas directa ou indirectamente. Esta influência começa por ser sub-reptícia, quase clandestina, com cartas secretas enviadas aos governos dos países onde o BCE adquire parte da dívida soberana. Nestas cartas, o BCE exige reformas que abrangem vastos domínios das políticas nacionais. A célebre carta do BCE dirigida a Berlusconi, primeiro-ministro italiano na altura, e divulgada inadvertidamente pelo Corriere Della Serra é exemplar.(1) A carta não se limita a recomendar reformas em áreas tão vastas como a saúde, a liberalização dos serviços públicos ou a legislação laboral. Exige igualmente que estas reformas se façam por decreto governamental, em detrimento da via parlamentar. Ainda sobre o caso italiano, é também conhecido o papel decisivo do BCE na demissão de Berlusconi e na investidura do eurocrata Mário Monti. Com a sua participação nas troikas em Portugal, Grécia, Chipre e Irlanda, a intervenção do BCE passa a fazer-se às claras. Em colaboração com a Comissão e o FMI impõe uma subversão completa dos regimes democráticos como dolorosamente sabemos em Portugal.

Finalmente, detenhamo-nos sobre a supervisão bancária, última competência que a Comissão e o Parlamento Europeu delegaram no BCE. A completa separação entre política monetária e supervisão bancária representa um elemento basilar da ortodoxia monetarista. Mais uma vez, as instituições da UE optam por dar mais uma «facadinha» nos seus princípios, centralizando ambas as competências no BCE e reforçando ainda mais o seu poder.

Esta concentração desmesurada de poderes no seio do BCE não pode continuar sem que seja questionada de forma séria a sua legitimidade democrática. Com o alargamento das suas competências «de facto», o BCE não pode mais refugiar-se numa posição de agente meramente técnico, neutro e apolítico. Ao mesmo tempo, nunca como hoje foram tão evidentes os sinais de agravamento da porosidade entre o BCE e o sistema financeiro privado. O PCP nunca alimentou nenhuma ilusão acerca do papel do BCE ao serviço do grande capital. A história acaba no entanto por dar-nos razão mais uma vez, pondo em evidência o carácter de classe das instituições europeias e das suas políticas.

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(1) http://www.corriere.it/economia/11_settembre_29/trichet_draghi_inglese_304a5f1e-ea59-11e0- e06-4da866778017.shtml?fr=correlati




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