Comentário

Epidemia conveniente

Maurício Miguel

Há uma epidemia conveniente entre os principais responsáveis da União Europeia (UE) e das suas grandes potências: a do não sabe, não viu, nem sequer ouviu dizer. Ao que parece, milhares de jovens, muitos deles de países da UE, alistaram-se no chamado Estado Islâmico, organização jihadista e sectária cujo objectivo é constituir um califado, uma autoridade religiosa sobre todos os muçulmanos do mundo no Iraque, na Síria, no Líbano e noutros países do Médio Oriente. Secretamente e de forma súbita, bem longe dos governos e das instituições da UE, os jovens de vários países aproximaram-se desta organização e, num acto não menos repentino, decidiram colocar pernas ao caminho para o Iraque e para a Síria, onde chegaram já de noite, sem barulho e portanto sem ninguém dar por isso. Era um segredo bem guardado. Não se sabe bem como, porque ninguém viu, nem sequer ouviu dizer, foram parar às mãos desses jovens e das suas organizações armas sofisticadas, ligeiras e pesadas, algumas delas vindas de outras frentes de batalha, para além de modernas carrinhas e outros meios de transporte de grandes construtores mundiais. Não consta que neste andar de cá para lá tenham promovido uma campanha solidária de angariação de fundos, mas, por portas e travessas, lá conseguiram obter o financiamento e, já agora, também treino, apenas uns exerciciozitos físicos de preparação para as exigências da milícia, provavelmente uma brincadeira colonial de cowboys a matar índios e, para que a preparação não andasse muito longe da realidade e se familiarizarem com o território, foram albergados na Turquia e na Jordânia, tendo como instrutores gente conhecedora das vicissitudes da conquista territorial e da imposição da dominação e da exploração do homem pelo homem, desses que andaram pela Líbia, pelo Afeganistão, pela Jugoslávia. Tudo caminhava com a naturalidade da organização das formigas no carreiro, depois da recruta juravam bandeira e lá seguiam em passo apressado para a Síria, tanto mais que o objectivo era consentâneo com os poderes da região e do mundo que queriam vergar este país, derrotá-lo, desmantelar o seu papel e o seu exemplo anti-imperialista na região. O exercício era atractivo, tanto que o recrutamento foi alargado. Chegavam jovens aos bandos, muitos milhares atraídos para o jihadismo e para entrarem numa frente de batalha cada vez mais alargada. Da Síria desdobraram-se em duas frentes, avançando para o Iraque, ocupando parte significativa destes dois países. O que efectivamente surpreendeu ministros e senhores da UE, que nada sabiam, nunca tinham visto, nem sequer ouvido dizer, foi quando chegaram notícias de que os jovens estavam a ser demasiado irreverentes e que, para além de práticas medievais relativamente a mulheres e crianças nas regiões ocupadas, estavam a matar de forma indiscriminada e recorrendo a métodos que pareciam só possíveis em filmes de terror. Perante esta situação arregimentaram-se os hipócritas do costume, juntaram-se os da NATO mais os da região e disseram, para o Iraque e para a Síria e em força, lembrando Salazar.

Governos não sabiam…

Não se trata de manifestação única desta epidemia do não sabe, não viu, nem sequer ouviu dizer. Ao que parece, umas quantas multinacionais montaram um esquema que lhes permite, utilizando alguns paraísos fiscais dentro da UE, nomeadamente o Luxemburgo e a Holanda, fugir ao pagamento de impostos. De acordo com notícias vindas a público recentemente, 340 empresas entraram neste esquema que tinha como vértice o governo luxemburguês liderado por Jean-Claude Juncker, actual presidente da Comissão Europeia. O processo era conhecido, mas nenhum governo o conhece, não viu, nem sequer ouviu dizer que o Luxemburgo funciona como paraíso fiscal onde o grande capital paga zero ou quase zero por cento de impostos sobre a mais-valia realizada na exploração dos trabalhadores, retirando milhões de milhões de euros em receitas fiscais a países onde elas já não abundam e onde também por isso, como em Portugal, os seus governos aproveitam para levar a cabo cortes nos salários e pensões e a destruição de direitos e conquistas sociais. É claro que tendo sido agora alertado, o próprio Jean-Claude Juncker que antes não sabia, nunca tinha visto nem sequer ouvido dizer, anunciou que colocará um ponto final no regabofe através do aprofundamento do federalismo e da harmonização fiscal na UE, o que, olhando para as imposições da UE ao nosso país e os benefícios fiscais concedidos pelo governo português, é proposta para levar a sério, sendo o modelo a seguir o do Luxemburgo.

 



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