Uma mortalha chega e sobra

Anabela Fino

Arvo­rando aquele seu ar de ad­ven­tista pre­o­cu­pado com a me­lena re­belde e adop­tando, por­ven­tura in­cons­ci­en­te­mente, uma cada vez mais acen­tuada pos­tura à Santa Comba Dão, a que não falta um certo curvar de om­bros como que para lem­brar às in­gratas gentes como é pe­sado o fardo de go­vernar, Passos Co­elho es­co­lheu as jor­nadas par­la­men­tares con­juntas PSD/​CDS-PP para de­sancar nos co­men­ta­dores e jor­na­listas, brin­dando-os com a de­sig­nação de «pre­gui­çosos», «pa­té­ticos», de «maria vai com as ou­tras»...

As re­ac­ções dos in­jus­ti­çados não se fi­zeram es­perar, o que teve por efeito (quase) re­meter para se­gundo plano três in­te­res­santes as­pectos destas jor­nadas que ti­veram como lema «Crescer com res­pon­sa­bi­li­dade», como ponto único o Or­ça­mento do Es­tado e como ar­tistas con­vi­dados os quinze mi­nis­tros do Go­verno (in­cluindo Passos e Portas). A saber: a in­ter­venção de Nuno Ma­ga­lhães, que se­gundo a pró­pria pá­gina do CDS na In­ternet «não poupou elo­gios ao tra­balho do Go­verno e dos de­pu­tados da mai­oria»; a apo­teó­tica ovação aos mi­nis­tros Nuno Crato e Paula Tei­xeira da Cruz; e o dis­curso de Paulo Portas re­jei­tando elei­ções an­te­ci­padas.

Com o OE-2015 em cima da mesa e as elei­ções no ho­ri­zonte, PSD e CDS-PP não en­con­traram me­lhor forma de con­tornar o de­sastre a que le­varam o País e o tabu da even­tual-fu­tura-nova-co­li­gação entre ambos a não ser agar­rando-se às ca­deiras do poder, te­cendo loas uns aos ou­tros e acla­mando os mi­nis­tros que lan­çaram a Edu­cação e a Jus­tiça na mais dra­má­tica ba­gunça de que há me­mória no País. Seria hi­la­ri­ante se não fosse tão grave. Seria có­mico se não fosse uma tra­gédia. Seria «pa­té­tico» se estes três anos de go­ver­nança PSD/​CDS-PP – e os mais meses que o Go­verno con­siga so­bre­viver ao seu pró­prio nau­frágio – não sig­ni­fi­cassem mais mi­séria, mais in­jus­tiça, mais de­si­gual­dade, mais re­tro­cesso eco­nó­mico e so­cial.

Cum­prida a função, mi­nis­tros e de­pu­tados le­varam para casa a car­tilha da men­tira que vão con­ti­nuar a servir ao País, em mais uma ronda pelas res­pec­tivas or­ga­ni­za­ções par­ti­dá­rias e muitas pres­ta­ções me­diá­ticas sobre os «im­postos que não sobem» apesar do au­mento da carga fiscal. Como diria o velho Jun­queiro, a ver­dade desta gente cabe numa mor­talha de ci­garro e ainda sobra es­paço com far­tura.

 



Mais artigos de: Opinião

Murros na mesa

«É importante que os governos não sejam subalternos, não sejam subservientes, que percebam que numa negociação com a União Europeia e com as organizações europeias é preciso dar um murro na mesa de vez em quando». Quem teve a ousadia de pronunciar...

O anátema

Estão em luta há quatro anos. Contra os roubos nos salários e nas reformas, contra a violação da contratação colectiva, contra a degradação do transporte público que prepara a privatização. Nunca aceitaram «os cortes...

América Latina pós eleições

Outubro foi um mês eleitoral intenso na América Latina, com as presidenciais e legislativas da Bolívia, Brasil e Uruguai. Ninguém duvidava, à partida, que os resultados das eleições, com natural destaque para o Brasil, assumiriam uma enorme importância, não...

Os burros

Quem teve a paciência de ouvir o discurso de Passos Coelho no encerramento das «jornadas parlamentares» conjuntas do PSD e CDS, realizadas na AR, ficou decerto perplexo entre a realidade que conhece, porque a vive, e a ficção dessa realidade, porque a ouviu do primeiro-ministro. A...

Uma proposta com futuro

No pas­sado dia 15 de Ou­tubro, foi dis­cu­tida e vo­tada na As­sem­bleia da Re­pú­blica uma pro­posta in­te­grada apon­tando a re­ne­go­ci­ação da dí­vida pú­blica, a pre­pa­ração do País para a li­ber­tação do euro e a re­cu­pe­ração do con­trolo pú­blico da banca. Foi a pri­meira vez que uma ini­ci­a­tiva com este con­teúdo e al­cance teve lugar em Por­tugal e, claro está, apa­receu pela mão do PCP.