Os burros

Henrique Custódio

Quem teve a pa­ci­ência de ouvir o dis­curso de Passos Co­elho no en­cer­ra­mento das «jor­nadas par­la­men­tares» con­juntas do PSD e CDS, re­a­li­zadas na AR, ficou de­certo per­plexo entre a re­a­li­dade que co­nhece, porque a vive, e a ficção dessa re­a­li­dade, porque a ouviu do pri­meiro-mi­nistro. A tau­to­logia (mesmo em voz bem co­lo­cada, como a deste chan­celer), nunca deixa de ser um imenso tédio, nem con­segue eximir-se de con­sistir na mesma coisa dita de vá­rias ma­neiras. Com a agra­vante de que a coisa re­pe­tida é muito es­grou­viada – o «novo pa­ra­digma» com que Passos julga «ficar na His­tória» – e in­su­por­tável, por ser dita ad nau­seam.

Aliás, esta téc­nica tau­to­ló­gica da chan­ce­laria Passos funda-se na frase de Go­eb­bels «uma men­tira re­pe­tida mil vezes trans­forma-se em ver­dade». Mas o mi­nistro da pro­pa­ganda nazi tinha, sobre Passos, a van­tagem de dispor de uma di­ta­dura sel­vá­tica, que con­tro­lava com uma fe­ro­ci­dade ex­trema tudo e todos, en­quanto Passos está li­mi­tado por um re­gime de­mo­crá­tico, em­bora re­pe­ti­da­mente a sua go­ver­nação seja in­cons­ti­tu­ci­onal.

Mas, para além do mar de rosas que a sua oração der­ramou sobre o País, o chan­celer juntou às suas fa­mosas ga­le­gadas (os por­tu­gueses são «pi­egas», os de­sem­pre­gados «que emi­grem», etc.) um fos­sado sobre os jor­na­listas e co­men­ta­dores, a quem acusou de «pre­gui­çosos» e «pa­té­ticos», pro­fe­rindo «in­ver­dades», como a de dizer que a des­pesa pú­blica não di­mi­nuiu, que a dí­vida saltou em três anos de 90% do PIB para 134% e que foram inú­teis tantos sa­cri­fí­cios.

O acos­sa­mento tem destas coisas e, como afirmou Je­ró­nimo de Sousa, Passos «é pobre e mal agra­de­cido», ao virar-se agora contra o sector da co­mu­ni­cação so­cial, que tem car­re­gado ao colo a sua go­ver­nação de­sas­trosa.

Aliás, se a di­a­tribe mal-agra­de­cida de Passos contra os jor­na­listas fosse ver­da­deira, pro­va­vel­mente o seu Go­verno já teria sido apeado.

A des­fa­çatez desta gente não tem me­dida nem a mais ru­di­mentar ba­liza moral, o seu dis­curso é um en­xurro de in­con­gruên­cias e men­tiras, o seu pro­ce­di­mento sempre foi ca­suís­tico, a única «re­forma» que fi­zeram (e di­li­gen­te­mente) foi a de­sar­ti­cu­lação do Có­digo do Tra­balho dei­xando os tra­ba­lha­dores nas mãos do pa­tro­nato, as me­didas bru­tais que têm apli­cado em ma­téria de cortes de sa­lá­rios, de pen­sões e de apoios so­ciais não são es­tu­dados e, muito menos, ava­li­adas as suas con­sequên­cias, em três anos au­men­taram o de­sem­prego para um mi­lhão e meio de pes­soas e de­zenas de mi­lhares de fa­lên­cias, de­sar­ti­cu­laram o en­sino pú­blico e lan­çaram o caos com uma «re­forma da Jus­tiça» às três pan­cadas e, no final disto tudo, gar­gan­teiam tau­to­lo­gi­ca­mente «re­tomas» e «re­lan­ça­mentos», que nin­guém vê, pela li­near razão de que não existem.

E ainda têm o des­coco de se di­zerem os «ven­ce­dores» nas pró­ximas elei­ções a haver.

Hão-de sê-lo, mas com as cores do burro quando foge.

 



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