As manhas

Henrique Custódio

O grupo que orienta Passos Coelho encaminhou-o para a retórica passepartout e ei-lo – quem diria – a praticar as subtis manhas da linguagem.

Na mesma semana, sucessivamente, disse que o anúncio do seu secretário de Estado da Administração Pública (de que os cortes nas reformas e pensões eram «definitivos») não passava de «especulação», para dias depois, na «maçadoria» (palavra dele) duma entrevista à SIC, transformar a «especulação» em solução «duradoura», ou seja, a «actualização das pensões» ficará «indexada à demografia e à produtividade» para o Dia de S. Nunca à Tarde, um milagreiro de estalo.

Na mesma entrevista, Passos Coelho pôs «a hipótese» de «desonerar salários e pensões» em 2016, o que levanta também a hipótese de que o primeiro-ministro considera admissível (a palavra não é dele) ser reeleito nas eleições de 2015, o que se conjuga com o que afirmou mais adiante: «o que provocou o aumento do risco de pobreza não foram as medidas de austeridade».

Um tal nível de inconsciência, só para lá do Hades.

Mas anote-se o gracioso verbo «desonerar» aplicado aos salários e pensões. Trata-se de um «alívio» (o significado do termo) sobre estes últimos, que Passos transforma em «aumento» pelo facto de diminuir («desonerar») a carga fiscal sobre os salários e pensões.

Um chico-espertismo que nem merece o arrazoado formal.

Mas a retórica passepartout parece infectar a generalidade da governança, ora com o inevitável Portas, que privilegia o verbo «começar» nos seus arranjos («vamos começar a inverter a trajectória», «vamos começar a fazer o que é necessário» e etc.), ora com o ministro da Economia, o afamado gestor cervejeiro Pires de Lima, a transfigurar Portugal de «patinho feio» em «cisne esbelto» ou ainda Passos Coelho, agora a propor-se «libertar» (!) os trabalhadores da Função Pública com novos despedimentos, sem esquecer o célebre «recalibrar» de Marques Guedes, uma estrídula invenção que a Pátria ainda não compreendeu.

Esta manha de tapar os factos com a peneira das palavras configura o paroxismo de uma actuação baseada na mentira e que chegou ao extremo de procurar esconder-se no meio do vocabulário. É um expediente patético e naturalmente ineficaz, mas, ainda assim, um nítido revérbero do que vale esta gente.

O Governo Passos/Portas é um circo de mentiras e vaidades, sempre o foi e chegou ao extremo onde o rebuço e o recato, mesmo formais, deixaram de fazer sentido na agenda governativa. Dirigentes e Governo têm mentido regularmente com tranquila desfaçatez, anunciando e desanunciando medidas que voltam a apresentar sob outro nome, apesar de reiteradamente chumbadas por inconstitucionalidade.

A ignomínia e a ilegalidade são os varais desta carroça, e o burro que a puxa é o desgraçado do País.

Todavia, não há manha que os safe.




Mais artigos de: Opinião

Populismo de cravo ao peito

Não constituirá novidade para ninguém o facto das comemorações do 40.º aniversário do 25 de Abril estarem a ser objecto de um intenso aproveitamento no plano ideológico por parte das classes dominantes e dos seus representantes no plano político. Foi assim...

Na senda de Calígula

«Roma locuta causa finita» (Roma falou questão encerrada) Foi assim que o secretário de Estado da Administração Pública rematou no Parlamento a explicação do que tinha dito dias antes sobre os cortes nas pensões. Triste figura a do sr....

Um e outro

O Presidente da República (PR) reconheceu a semana passada, publicamente, que a política seguida nos últimos três anos criou «situações de injustiças» e que há portugueses a viver em condições «intoleráveis». Mais, disse...

De PEC em PEC

Encurralado pela indisfarçável identidade de propostas e posicionamentos com aqueles a que se diz opor, o PS ressuscitou a velha tese do PEC 4. Para o PS, o País está como está porque, chumbado este, lá teve de subscrever o chamado programa de assistência.

Abril é confiança

O 25 de Abril foi uma surpresa para o mundo. Quem havia de dizer que naquele pequeno país, atrasado, sujeito a uma velha ditadura protegida pela NATO, rodeado pelo Atlântico e pela Espanha franquista, havia de eclodir a primeira (e até agora única) revolução do pós-guerra...