O cacifo

Anabela Fino

Desde finais de Outubro, 12 (d-o-z-e) dos mais de dois mil sem abrigo «registados» em Lisboa passaram a dispor do acesso a um bem escasso: um cacifo. Em abono do rigor deve dizer-se que quando a pertinente informação foi divulgada ainda havia um cacifo por atribuir, o que significa que embora sobejem potenciais candidatos o rateio não é fácil.

A peregrina ideia partiu de uma organização cheia de boas intenções e fértil imaginação, que certamente depois de ouvir as dificuldades e anseios dos desprotegidos a quem presta apoio de rua conclui da utilidade prática de lhes disponibilizar um espaço próprio para guardar os parcos pertences, o que não só os protege de eventuais roubos como lhes permite uma maior mobilidade, já que deixam de ter de deambular pelas ruas da cidade com a trouxa às costas ou de se ater ao portal do prédio ou ao banco de jardim que lhes serve de poiso. Mais, segundo a dita organização, o facto de os sem abrigo disporem de um cacifo ajuda «a criar alguns hábitos, permitindo que as pessoas tenham um espaço seu para guardar as coisas de forma digna e segura».

Rezam ainda as crónicas que a passagem da ideia à prática não foi fácil, devido ao facto de as empresas contactadas não se terem mostrado sensíveis à solidária iniciativa. A questão viria a ser ultrapassada com o apoio da Câmara, que sendo proprietária de um vasto parque imobiliário terá concluído que um investimento de 12 mil euros nuns quantos cacifos amarelos nuns tantos parques da cidade não faria grande diferença.

Temos pois que, a vingar esta experiência piloto, os sem abrigo de Lisboa, primeiro, os do resto do País, depois, e no futuro – quem sabe – em todo o mundo (a ideia é exportar) vão passar a ter um cacifo para os seus objectos pessoais – um cobertor, uma ou outra peça de roupa, uma escova de dentes, o que for... –, ganhando a «liberdade» de andar mais ligeiros à procura da sopa da caridade, dos restos dos restaurantes e supermercados, da esmola, da sobrevivência enfim, sem outra preocupação do que a de guardar bem a chave do cacifo onde ao final do dia irão buscar o estritamente necessário ou se calhar nem tanto, só o possível para a sua condição, para passar mais uma noite numa cama de cartão.

Haverá quem diga que é melhor do que nada, e é verdade. Sabemos que para quem tem fome a prioridade é um prato de comida, mas só o gesto de caridade de dar de comer a quem tem fome não resolve, antes alimenta, a miséria dos excluídos. Confundir um cacifo com dignidade e segurança, por melhores que sejam as intenções – e não se duvida que o sejam – é uma mistificação. Dignidade e segurança é não precisar de esmolas, é ter um trabalho digno, um tecto a que se possa chamar seu, comida na mesa e alimento para o espírito. O resto é querer tapar o sol com a peneira.

Disseram-nos que o primeiro sem abrigo a ter um cacifo guardou nele uma fotografia da filha. É comovente. Mas comove muito mais pensar que andará por aí com a chave do cacifo onde guarda a vida presa por um elástico no braço, para a não perder nos bolsos rotos da roupa com que se cobre.

 



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