A inconstitucionalização

Henrique Custódio

Em apenas dois anos, a le­gis­lação go­ver­na­mental foi chum­bada cinco vezes pelo Tri­bunal Cons­ti­tu­ci­onal (TC): a pri­meira em Abril de 2012, que pre­tendia criar o crime de en­ri­que­ci­mento ilí­cito (vi­o­lava a «pre­sunção de ino­cência»); a se­gunda três meses de­pois, que pro­punha o corte dos sub­sí­dios de fé­rias e de Natal dos fun­ci­o­ná­rios pú­blicos e dos re­for­mados (vi­o­lava o «prin­cípio de igual­dade»); a ter­ceira em Abril/​2013, ao in­sistir no corte de sub­sí­dios de fé­rias de fun­ci­o­ná­rios pú­blicos e pen­si­o­nistas (que o TC proi­bira ta­xa­ti­va­mente nove meses antes); a quarta um mês de­pois (Maio/​2013), anu­lando a «Lei Mi­guel Relvas», que pre­tendia a clas­si­fi­cação das en­ti­dades in­ter­mu­ni­ci­pais como au­tar­quias lo­cais (mas tais ór­gãos não são eleitos por su­frágio uni­versal); a quinta foi há dias, em Agosto/​2013, quando o TC re­jeitou a lei que per­mi­tiria des­pe­di­mentos co­lec­tivos na Função Pú­blica.

É es­ten­to­re­a­mente im­pos­sível que estas su­ces­sivas in­cons­ti­tu­ci­o­na­li­dades en­gen­dradas pelo Go­verno sejam pro­duto de ig­no­rância: o que não falta no Exe­cu­tivo são as­ses­so­rias de so­ci­e­dades de ad­vo­gados ou acesso a cons­ti­tu­ci­o­na­listas – in­cluindo os mais re­pu­tados, que, por livre ar­bí­trio e pu­bli­ca­mente, se pro­nun­ci­aram sempre contra todas estas leis in­cons­ti­tu­ci­o­nais.

Daí que tal pro­dução só pode ser de­li­be­rada e cons­ci­ente, por parte do Go­verno.

O que impõe atentar-se em al­guns factos da che­gada ao poder desta gente.

Pri­meiro facto: sabe-se hoje que a co-as­si­na­tura do «res­gate» da troika entre o PS/​Só­crates, o PSD e o CDS foi apoiada pelos dois úl­timos para sa­tis­fazer a sua sede de poder («de ir ao pote», como Passos se des­caiu a dizer).

Se­gundo facto: na sua posse em Junho/​2011, o pri­meiro-mi­nistro disse que o seu Go­verno ia «mudar o pa­ra­digma» no País (hoje já se traduz por «des­truir o Es­tado So­cial») e que o «pro­grama» im­posto pela troika era tão bom, que o Go­verno ia «ul­tra­passá-lo» em aus­te­ri­dade e cortes exi­gidos.

Ter­ceiro facto: a co­berto das «exi­gên­cias da troika», a co­li­gação Pedro e Paulo lançou-se numa de­li­be­rada go­ver­nação in­cons­ti­tu­ci­onal, pro­du­zindo le­gis­lação su­ces­siva que sabia ir chumbar para, em de­cor­rência, «afastar» de si a ile­ga­li­dade fla­grante e «des­locar» para o TC a «res­pon­sa­bi­li­dade» de «travar as me­didas do Go­verno», de re­pente sem má­cula e su­pos­ta­mente bran­que­adas na sua óbvia in­cons­ti­tu­ci­o­na­li­dade.

Para ajudar a festa, os ór­gãos de in­for­mação vão-se apli­cando na ze­losa quan­ti­fi­cação das «perdas do Go­verno» com os chumbos do TC, como se pu­dessem ser clas­si­fi­cados de «perdas» os es­bu­lhos in­cons­ti­tu­ci­o­nais à Função Pú­blica e aos ser­viços es­ta­tais, es­ca­ro­lada e ver­go­nho­sa­mente in­sis­tidos como po­lí­tica deste Go­verno.

Não con­se­guindo «mudar a Cons­ti­tuição», como re­cla­mava em cam­panha, Passos optou por violá-la sis­te­ma­ti­ca­mente.

É o que se chama a in­cons­ti­tu­ci­o­na­li­zação do exer­cício do poder em Por­tugal. E a His­tória re­gis­tará, ob­vi­a­mente, o papel do ac­tual PR nesta afronta na­ci­onal.



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